Mark Knopfler revê infância e adolescência em novo disco
Mark Knopfler – One Deep River
52′, 12 faixas
(Universal)
Por mais que lance discos solo com certa frequência, Mark Knopfler segue lembrado como o “líder do Dire Straits”. E olha que ele tem um portfólio mais do que respeitável como artista, trabalhando em trilhas sonoras e álbuns solo desde 1983, quando sua banda principal estava prestes a estourar mundialmente. Foi a partir de 1996 que Mark iniciou sua sequência de discos como artista popular, já contando com quatro boas trilhas para o cinema em sua carreira. “Golden Heart” surgiu e apresentou uma nova/velha persona musical para os fãs: o contador de histórias, tipicamente britânico (nascido na Escócia, vivendo em Newcastle, norte da Inglaterra), praticante de um folk gentil e esmerado, com algumas interseções com o blues e, acima de tudo, desinteressado do rock de estádio que lhe trouxera fama e fortuna na segunda metade dos anos 1980. Desde então, Mark já soltou onze álbuns (um deles ao vivo, com a cantora Emmylou Harris), aprofundando esta persona musical e chegando agora ao mais recente capítulo de sua trajetória: “One Deep River”.
Gravado em seu estúdio particular, com a presença de músicos amigos e amigos músicos (o tecladista Guy Fletcher, ex-Dire Straits, produz e participa), “One Deep River” é mais um trabalho irrepreensível de Knopfler. Sua guitarra está lá, reconhecível ao primeiro acorde, reafirmando que ele é um dos últimos guitar heros da música pop, talvez o mais fluente dos anos 1980. Mesmo que os fraseados blues e folk que utiliza ao longo do álbum estejam muito longe dos tempos de outrora, tudo é belo e extremamente bem feito. Aliás, não dá pra reclamar de um sujeito que já faz a mesma coisa há quase trinta anos. Por algum motivo estranho, as pessoas ainda esperam de Mark um retorno ao Dire Straits e isso não é privilégio de fãs de um país distante da realidade do homem, como o Brasil, por exemplo. Há alguns dias, entrevistado no jornalístico matinal da BBC, o âncora fez a fatídica questão: “mas não dá mesmo pra imaginar uma última volta do Dire Straits?”, à qual Knopfler respondeu, sorridente, que “não, eu nem penso nisso”. Paciência.
Mark quer mesmo é aproveitar sua aposentadoria – é um dos músicos mais ricos do mundo – fazendo o que mais gosta: tocar, compor e mergulhar em seu estúdio caseiro para burilar timbres e compor canções sobre os tempos de sua infância e adolescência, vividos em Newcastle. A capa de “One Deep River” entrega esta referência pessoal, estampando uma das pontes que cobrem o Rio Tyne, que banha a cidade e que tem grande importância para a região. É onde ainda vive Mark e onde ele busca inspiração para compor as histórias bacanas de um meio de século 20 no qual a população lutava contra a fome e a instabilidade do pós-guerra, numa Grã-Bretanha que atravessava mudanças profundas e pavimentava o seu futuro, tendo como principal característica a perda de importância perante o mundo, face ao fim gradativo de seu império colonial. Em meio a tudo isso, homens, mulheres, crianças foram e vieram, construindo o país que viria dar no que deu. Knopfler viu, viveu e sentiu tudo isso.
A temática auto-biográfica é uma característica fortíssima de sua obra pós-Straits, e é algo que ele executa com brilho. Assim como seus trabalhos solo anteriores, “One Deep River” tem momentos bacanas, como “Ahead Of The Game”, um blues country tocado em midtempo, com predominância acústica e o velho registro rouco de Mark contando causos. “Scavengers Yard” tem mais guitarras proeminentes, ambiência elétrica bem pensada e uma letra sobre um amor impossível. Assim como as pontes e os rios, a paisagem familiar ao homem também tem túneis e “Tunnel 13” é uma canção em câmera lenta, com corais femininos muito bem postados e andamento lento, com belo trabalho de guitarras base. “Watch Me Gone” também vai por essa linha, com sutilezas de guitarra enfeitando a paisagem chuvosa, que também é retratada em “Sweeter Than The Rain”. Em “Before My Train Comes” ele insere o elemento ferroviário como um arauto de mudanças, partidas e chegadas e finaliza com a faixa-título, bela, lenta e cinematográfica.
“One Deep River” é um típico álbum solo de Mark Knopfler. Aqui ele faz a música que gosta de executar, contando suas histórias, investindo cada vez mais nos silêncios e sutilezas, cada vez mais deixando os grandes palcos para trás. Seu público é fiel e aplaude. Tá tudo certo.
Ouça primeiro: “One Deep River”, “Ahead Of The Game”, “Scavengers Yard”, “Tunnel 13”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.