Nada Será Como Antes – Oportunidade desperdiçada

 

 

 

Já faz alguns anos que o álbum “Clube da Esquina”, lançado por Milton Nascimento e Lô Borges em 1972, se transformou num clássico absoluto da música brasileira. Votações, escolhas, novas prensagens em vinil, reconhecimento estrangeiro, turnês comemorativas, tudo isso e muito mais colocou o álbum num lugar de destaque na produção cultural brasileira do século 20, reverberando até hoje. Por mais que haja gente que desconfie desse bafafá em torno do disco duplo, ele é, de fato, uma imensa realização artística. E mais: o que estava por trás do álbum traduz muito do que havia de aflição, medo, indefinição e, paralelamente, amor, afeto e criatividade numa cidade como Belo Horizonte, entre a segunda metade dos anos 1960 e a primeira cinco anos da década seguinte. Sendo assim, é bom sabermos sobre os laços afetivos surgidos neste cenário, que também serviram para identificar os futuros participantes do álbum, esses amigos músicos que se reuniam para tocar e compor, bem como os personagens surgidos nessa cena cultural. Eles e as próprias canções são a matéria prima de assuntos do próprio documentário, em medidas iguais. Certo?

 

Certo. E que oportunidade seria melhor para concentrar várias informações sobre a realização do lançamento de “Clube da Esquina”, nas condições tão peculiares (em meio a embates com a gravadora Odeon) em que se deu e, ao mesmo tempo mapear os responsáveis por ele e o que fizeram? Pois é, não penso em outra chance tão dourada quanto um documentário cheio de detalhes, informações, fichas, histórias pessoais, depoimentos da época e de hoje, cruzamento de dados, imagens de arquivo, revelações….Pois é. O trabalho de Ana e sua equipe fica no terreno das tentativas bem intencionadas e falha totalmente na parte informativa, optando por uma narrativa subjetiva, idealizada, sonhadora, deixando para o público a tarefa de filtrar e entender o contexto. Se houvesse uma farta quantidade de trabalhos da mesma natureza sobre o “Clube da Esquina” e seu contexto, a obra de Ana entraria como um simpático complemento, mas, infelizmente, não há tal fartura. Após uma sessão de “Nada Será Como Antes – A música do “Clube da Equina””, a sensação é de uma grande oportunidade desperdiçada.

 

O roteiro funciona até o primeiro terço de projeção, no qual temos os depoimentos dos irmãos Borges, Lô e Marcio, e a participação de Marilton e Telo, com conversas e caminhadas pelas ruas de Belo Horizonte, nais quais mostram a esquina das Ruas Divinópolis e Paraisópolis e falam como as coisas aconteciam no fim dos anos 1960. A sensação de familiaridade e camaradagem entre os irmãos é palpável e ela indica que a cena que geraria “Clube” era calcada no afeto e na amizade. Logo em seguida, com a entrada de outros músicos, o roteiro parece abrir mão da narrativa ordenada e parte para “deixar os personagens falarem por si mesmos”, em vários depoimentos de músicos participantes e amigos. Ainda que algumas falas sejam bacanas e deem voz a pessoas que pouco falaram até hoje a respeito do disco e da cena musical mineira, como o saxofonista Nivaldo Ornelas ou o baixista Novelli, a falta absoluta de contextualização incomoda demais. A partir daí, a cronologia de eventos é desrespeitada, os lugares e situações se atropelam e o documentário se perde totalmente.

 

Faz falta a figura de um âncora narrativo, de alguém que enumerasse os eventos e os tempos específicos. As informações sobre a carreira de Milton Nascimento estão ausentes. “Travessia”, dele e de Fernando Brant, é citada sem qualquer referência cronológica, bem como “Para Lennon e McCartney” e a própria canção “Clube da Esquina”, todas elas ausentes do álbum de 1972. Detalhes sobre as sessões de gravação, realizadas no Rio, com vários integrantes da turma hospedados numa casa em Niterói também estão ausentes. As belas imagens de época surgem meio sem eira nem beira, desperdiçadas e até apresentando contextos falsos. As declarações de Milton Nascimento sobre o álbum são datadas, contrastando com aparições dos Borges, bem mais recentes. Talvez fosse melhor se ancorar no livro de Marcio Borges, “Os Sonhos Não Envelhecem”, ou no mais recente “De Tudo Se Faz Canção”, também de Marcio, com participação de Chris Fuscaldo, ambas obras de referência sobre o assunto. Nem a capa do álbum aparece ao longo dos oitenta minutos de duração.

 

Certo que nenhuma obra precisa ter a intenção declarada de trazer informações relevantes, mesmo um documentário. Mas, em casos como este, é inevitável achar que ele seria muito melhor se fosse realizado de outra forma. Uma pena.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *