Marcelo Adnet x Mario Frias

 

 

Quando Lula foi eleito presidente em 2003, escolheu Gilberto Gil para ser o ministro da Cultura. Tal movimento, junto com outras nomeações e escolhas, traduziu uma mensagem clara: seu governo seria especialmente cuidadoso com este assunto e vinha disposto a inovar. Investiu-se na área, o aparelho estatal de incentivos foi melhorado, a educação, contida no espectro, também recebeu especial consideração. Já não podemos fazer a mesma afirmação sobre o atual governo, pelo contrário. O Ministério da Cultura, criado em março de 1985, foi extinto. Junto com ele também encerrou suas atividades o Ministério do Desporto e do Desenvolvimento Social, sob a alegação de que seria mais eficiente juntá-los sob o Ministério da Cidadania. Tal movimento significa claramente que as antigas pastas não têm a mesma importância que tiveram no passado, até mesmo em outros governos conservadores, como o do próprio Sarney, que o criou. E mais: em novembro de 2018, a nova Secretaria Especial da Cultura foi transferida para o Ministério do … Turismo.

 

Após quatro nomeações – henrique medeiros, ricardo braga, roberto alvim, regina duarte – o atual ocupante da pasta é o “ator” mário frias. Carioca de 48 anos, frias tem no currículo passagens pela novela adolescente global “Malhação”, pontas em novelas, participações especiais aqui e ali e um tempo como apresentador de game show na … redeTV. Agora, talvez por demonstrar apoio irrestrito ao atual governo, ele se credenciou “automaticamente” para a função de gerir as políticas públicas para a área de Cultura no Brasil. Como um dos atos de sua administração da pasta, frias estrelou um filminho no qual aparece anunciando a campanha sobre “Heróis Brasileiros”, que pretende mostrar cidadãos comuns que cometem atos heróicos da mesma forma que “vultos históricos” já fizeram pelo país. O tal filme mostra o secretário no Museu do Senado, caminhando pelo acervo, olhando para quadros, bustos, objetos, cartas e entoando um discurso nacionalista-burrista em meio a uma trilha sonora empavonada.

 

Adnet, que é famoso pelas imitações de políticos e por ter uma postura progressista, assumida em público, aproveitou o mico institucional e fez uma versão da propaganda de frias, enfatizando sua evidente canastrice e o caráter absolutamente anacrônico e estapafúrdio da propaganda, que mostra vultos como Pedro II, Princesa Isabel, Duque de Caxias e uma imagem do rei … Leopoldo II, da … Bélgica, notadamente um dos maiores genocidas de todos os tempos e cuja passagem pela monarquia daquele país vem sendo fruto constante de estudos e políticas de reconhecimento e retribuição do governo para com sua ex-colônia africana, o Congo, ex-Zaire. Pois bem. Adnet produziu um esquete extremamente engraçado, que logo viralizou nas redes sociais e que foi atacado pelo secretário, referindo-se ao humorista como “judas”, “imundo”, “bobão”, “sem futuro” e “frouxo”. Adnet respondeu que “até o secretário tinha recomendado o vídeo”.

 

O que fica nisso tudo, gente? A tal regra da proporcionalidade da primeira frase deste texto, sobre a relevância/importância da Cultura para um governo. O atual não tem qualquer vínculo com o assunto, pelo menos, não com as concepções mais modernas e plurais de “Cultura”. Só enxerga o Brasil como uma nação herdeira de uma monarquia europeia, que, “nobremente”, manteve sua familia real – apoidora renhida do atual presidente – e que, “naturalmente” tornou-se uma nação com “valores”. Tal visão é o arcabouço da própria campanha da secretaria de Cultura (Secom), na qual “heróis” são colhidos entre o “homem comum” brasileiro. Tal visão é ultrapassada dentro das Ciências Sociais, que, há pelo menos 90 anos, entenderam que os fatos são produzidos diariamente, por todos. Que todos os discursos e pontos de vista são válidos, que todas as experiências são únicas e que, sendo assim, se integram dentro de grandes contextos históricos e humanos. Tudo está interligado, tudo merece reconhecimento, nada é desprezível ou inferior ou menor ou menos importante.

 

O Brasil, por mais que lutem os conservadores, nunca foi, não é e nunca será somente branco, cristão, europeu. O Brasil só é Brasil porque tem negros, índios, imigrantes e suas respectivas culturas, trajetórias e vidas incorporadas na nossa nacionalidade. E que todas as culturas desprezadas por anos de burrice, séculos de maldade, têm que ser reparadas e reconduzidas aos mesmos privilégios e status de qualquer crença ou modo de ser entendido como “hegemônico”.

 

Seria bom se, por exemplo, alguém dissesse que o nosso processe de independência é o ÚNICO na América Latina que foi conduzido pela classe representada pela própria monarquia, que sua consequência primordial foi o nascimento de um país atrasado, antiquado, defasado, obsoleto e marcado por um conservadorismo intrínseco, que comungou o que havia de pior na corte portuguesa. Tudo isso como um meio de manter privilégios e condições. Tal visão está arraigada na nossa mentalidade até hoje.

 

Sobre frias e Adnet, eles são a representação clara e cristalina do brasil e do Brasil, do Brazil e do Brasil, dos Estados Unidos do Brasil e da República Federativa do Brasil e de todos os indícios de que somos muitos, não somos um só.

Aproveitando o ensejo, feliz 7 de setembro.

 

 

Em tempo: a música utilizada pelo vídeo da Secom é do compositor australiano Scott Buckley, que não recebeu qualquer pedido do governo para utilização de sua composição. Ele foi avisado por um usuário do Twitter e ficou indignado, tendo entrado já com reclamações para que a peça seja tirada do ar.

 

https://twitter.com/musoscientific/status/1302147658505740288?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1302147658505740288%7Ctwgr%5Eshare_3&ref_url=https%3A%2F%2Fbr.noticias.yahoo.com%2Fmusico-denuncia-governo-violacao-direitos-autorais-151757722.html

 

 

O vídeo da Secom

 

 

 

O vídeo de Adnet

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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