A camisa amarelona

 

 

Já disse de outras vezes aqui: meu interesse pela seleção brasileira de futebol masculino se perdeu em algum ponto entre o fim dos anos 1990 e a conquista do pentacampeonato em 2002. Passei batido pela Copa de 2006, me interessei pela Copa de 2010, muito mais pela campanha da seleção uruguaia – que ali conquistou sua melhor colocação em mundiais desde o Maracanazo – e vibrei com a Copa de 2014, por dois motivos específicos: fui pesquisador de conteúdo do filme oficial da Fifa para o evento e nela vimos o histórico 7 x 1, um desses eventos que marcam a trajetória de um esporte e do qual irão falar até o fim dos tempos. A Copa de 2018 também foi bacana, também por dois motivos: fui pesquisador de conteúdo da série Campo de Batalha, veiculada na ESPN Brasil, com João Barone como apresentador e, sim, pelo fato dela ser sediada na Rússia. Pois bem.

 

Como dá pra ver, sou fã de futebol, mas não mais da seleção brasileira. Há vários motivos. Ela não representa o esporte nacional, ela é objeto de sucessivas e intermináveis ações de picaretagem política, ela é um dos alvos preferidos do neoliberalismo internacional e, sim, porque, importante que é para a construção de uma ideia de país unido e harmonioso, volta e meia, a camisa amarela é símbolo de uma situação irreal. Basta voltar os olhos para 2013/14 para detectar o uso de sua camisa como uniforme por parte de uma massa de pessoas caracterizada pelo pensamento conservador e antipopular. De uma forma nada sutil, a camisa amarela foi surrupiada das camadas mais populares e levada para corpos limpinhos, cheirosos e capazes de pagar quase 400 reais. Não só isso, a camisa amarela virou o uniforme da politica nacional conservadora e de extrema direita que nos levou a este estado de coisas que vivemos hoje. O que era desinteresse esportivo, tornou-se fato irremediável. Lamento. Sigo amando futebol, no entanto, completamente fascinado pelo que ele representa para nós.

 

Sendo assim, chegamos a este episódio da Copa América. Argentina e Colômbia declinaram da organização do evento por conta da covid-19. Mas não o Brasil, cujo governo federal aceitou prontamente o pedido da Conmebol. Um absurdo sanitário, mas lamentavelmente esperado em se tratando de quem está no Planalto atualmente. Só que, desta vez, houve algo diferente: uma perspectiva de insurreição por parte de jogadores e comissão técnia, supostamente indignados pela realização do evento aqui, em plena terceira onda da covid-19. Seria verdade? Pela primeira vez em anos, me vi acompanhando o noticiário da seleção, em busca de uma guinada. Seria possível que os manifestantes das micaretas burristas não mais usassem a camisa amarela? Será? Já estavam chamando o Tite – um conciliador nato – de Titsky. E jogadores-milionários internacionais como Neymar e Alisson de Neymarks e Stalisson. Bons memes, admitamos. E note que nem falamos do afastamento do presidente da cbf, rogério caboclo, por conta de denúncia por assédio moral e sexual, com direito a áudios vazados em horário nobre na globo tv.

 

Mas foram só memes. Ontem saiu o manifesto dos atletas e da comissão técnica, anunciado para depois dos jogos contra Equador e Paraguai pelas Eliminatórias da Copa de 2022. E nele vimos um grupo que, apesar do descalabro sanitário e de bom senso, topa participar da Copa América. Não importa o risco, o mais importante é vestir a camisa da seleção brasileira.

 

Pensei comigo: que desperdício. No passado, quando homens enfrentaram conjunturas, por mais que fossem vítimas delas momentaneamente, mais tarde tiveram a chance de entrar para a História. Tal fato requer sacrifício, mas a compensação é eterna, creio. Pensei em João Saldanha, técnico brasileiro responsável pela criação do mágico time de 1970, comunista assumido, sacado do comando às vésperas da Copa do México pelo general médici, que escalou Zagalo para ocupar o seu lugar. A disputa de narrativa é enorme, mas Saldanha é o responsável por tudo que ocorreu ali. E não abriu mão de sua posição ideológica em plena era de chumbo do regime político. Entrou para a História sem manchas. A narrativa inversa coloca Zagalo como o principal protagonista ou, no máximo, atribui ao time esta condição, como se nenhum técnico fosse necessário para orientá-lo. De certo que Zagalo tem currículo extenso e bons serviços prestados ao futebol nacional, mas nunca terá a Copa de 1970. Pelo menos, não naturalmente, sem ressalvas. E lembrei também de gente como Gandhi, Martin Luther King, Nelson Mandela, caras que se tornaram maiores até que seus países de origem, alçados à condição de … integrantes da Humanidade.

 

Nem precisa ir muito longe: os atletas da NBA, indignados com as manifestações explícitas de racismo nos Estados Unidos sob trump, adotaram postura agressiva nos protestos decorrentes, sem falar que já fizeram greves e se manifestam com frequência sobre os assuntos do país. Aqui, no futebol do Brasil, quando há um manifesto é de conivência com o estado de coisas. Sinceramente, era melhor não falar nada, não manifestar nada e seguir com a camisa amarelona envergada.

 

Se antes a gente falava sobre as multidões com a camisa amarela nas aglomerações – que seguem acontecendo – agora acho que dá pra falar na camisa amarelona do manifesto de Assunção, quando os atletas e a comissão técnica abriram mão de suas supostas posições para assentir com uma política criminosa, que não tem qualquer pudor em colocar vidas em risco para reafirmar suas posições. Estes jogadores entram, sim para a história, mas aquela com “H” minúsculo e pela porta dos fundos. E vestindo suas camisas amarelonas.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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