Marcello Maldonado e a 24ª Feira de Vinil do Rio de Janeiro

 

 

 

 

 

Eu conheci o Marcello Maldonado por acaso, há cerca de uns cinco anos. Temos um grande amigo em comum que me dissera: “A Satisfaction tá liquidando o estoque, vai fechar”.

 

Eu me lembrava da Satisfaction dos tempos de Copacabana, quando eu começava a comprar CDs com um pouco mais de frequência e, naqueles tempos, virada dos anos 1980/90, era difícil achar algo que ultrapassasse os catálogos ainda insípidos das gravadoras nacionais. Lembro perfeitamente do dia em que comprei dois álbuns importantíssimos em CD, direto do estoque da Satisfaction: o primeiro do The Doors e “What’s Going On”, de Marvin Gaye, num movimento que fazia minha pequena coleção subir vários níveis em termos de relevância. Mas, nos tempos que vieram logo após, eu dei preferência à Spider, uma lojinha que ficava numa galeria em Ipanema, pródiga em trazer novidades inglesas, deixando a Satisfaction um pouco em segundo plano, até que perdi completamente o contato com ela.

 

 

Este amigo, décadas depois, me avisou deste encerramento de atividades e me passou o endereço da loja, então numa sala no Centro do Rio. Fui lá poucos dias antes do fechamento e achei muita coisa a preço em conta e, no balcão, às voltas com o movimento, estava o Marcello. Gente finíssima, logo engrenamos uma conversa sobre discos e os áureos tempos da loja, ainda em Copacabana. Ao longo dos anos, comprei e vendi álbuns ao Marcello, sempre em transações boas para ambos. Não sabia do envolvimento dele com a Feira de Vinil até a edição do ano passado, na qual foram homenageados Antonio Carlos e Jocafi. Além de amigo, o cara é um empreendedor raçudo, que leva adiante o evento com a parceria de outro boa praça, Marcelo Bogo, conhecido também como DJ MB Groove. Juntos, esses caras movem céus e terras para manter vivo o maior evento da cidade do Rio de Janeiro no segmento de venda e compra de LPs. Conversei com Maldonado sobre como está o andamento para a 24ª edição, que vai se realizar no Clube Hebraica, no bairro das Laranjeiras, Rio de Janeiro, no próximo dia 20. Quem gosta de música, independente do formato, mas tem aquele fraco pelas bolachonas de vinil, não pode faltar.

 

 

– Há quanto tempo rola a Feira de Vinil do RJ?

A Feira de Vinil do Rio de Janeiro existe desde 2009. No ano que vem já faremos quinze anos como evento. Um evento que, durante muito tempo, foi autossustentável através da venda de seus stands e já promoveu uma grande venda de discos ao longo de toda a sua história. Podemos considerar como um evento consagrado, reconhecido e extremamente longevo, apesar de todas as dificuldades que enfrentamos ao longo destes anos.

 

– Conta um pouco da tua experiência como fã e comerciante de vinil.

Como vários de nós, expositores, eu comecei a minha vida ligada ao LP como consumidor. Eu fui, digamos assim, “iniciado” por um primo mais velho e, durante um bom tempo da minha vida, eu cheguei a ter uma coleção extremamente grande que, por um motivo de doença, precisei vender uma parte. E aí, tempos depois, quando eu me vi, eu já era um comerciante. Eu cheguei a ter uma das lojas mais icônicas do Centro do Rio, a Satisfaction Discos.

 

– O público que for na Feira de Vinil no dia 20 de agosto vai encontrar o que?

Nessa 24 edição, o público que aparecer no Clube Hebraica vai encontrar uma média superior a cinco mil LPs disponíveis, de todos os expositores presentes. Rock, música brasileira de extrema qualidade, jazz, blues, bossa nova, velha guarda do samba, a clássica MPB, alguns stands terão uma curadoria bem caprichada de CDs também. A gente vê um interesse de uma parte do público pelos CDs. Apesar de sermos vinil, somos abertos também a isso. E já contamos em várias edições com stands de camisetas, memorabilia, itens de colecionador…Também estarão presentes duas lojas dos nossos patrocinadores, a Gravadora Rocinante, que é uma gravadora nova, mas com uma visão muito boa de mercado, parceira dos expositores, que aposta em artistas já consagrados, como João Donato – falecido recentemente – e Jards Macalé e em novos talentos. E a Universal Music, uma gigante do setor fonográfico, através do seu Clube de Assinaturas. O público vai ter uma ampla gama de LPs à sua disposição. Para todos os gostos e todos os bolsos.

 

– Ao longo do tempo, o apreço pelo vinil ganhou muita força. A que você atribui isso?

O LP tem uma coisa interessante. O primeiro grande apelo dele é a memória afetiva. O que nós percebemos no evento, e até em visitações em eventos semelhantes em outros lugares, é que o LP desperta o interesse de várias gerações. É um evento intergeracional. A gente vê casais, pessoas jovens sozinhas, pessoas com filhos pequenos, a terceira idade, seja os que herdaram coleções dos pais, seja aqueles que nunca se renderam ao CD ou ao streaming…Aqueles que gostam do produto de uma forma globalizada, que gostam pelo charme de ouvir, pela qualidade – que julgam melhor – além de outros atrativos, como as capas dos LPs. Antigamente nós tínhamos uma gama de profissionais – capistas, designers, fotógrafos – que produziram capas icônicas para LPs.

Os públicos se juntaram – essas pessoas que permaneceram fiéis ao formato se juntaram a uma nova geração de consumidores, e isso oxigenou o consumo dos LPs no mundo inteiro e isso se reflete nos números positivos de vendagem. Isso era impensável há alguns anos.

 

 

– Qual a principal dificuldade em montar um evento como a Feira de Vinil numa cidade como o Rio?

A maior dificuldade em montar e permanecer com um evento como esse, numa cidade como o Rio de Janeiro, é lidar com uma economia que ainda está se reaquecendo…Um estado que, mesmo tendo sido sede de várias gravadoras no passado, uma cidade que já foi chamada de “capital cultural do país”, o Rio tem uma coisa perversa – é uma cidade de modinhas e a população abraça uma dessas modinhas e, com a mesma velocidade, a descarta. Os desafios de uma economia frágil, a falta de uma política cultural num país que ainda tenta se recuperar do governo passado e de você juntar mais público num cenário como esse, tudo isso sem apoio, é um enorme desafio. Mas a história mostra que a gente conseguiu seguir em frente.

 

 

– Como você identifica o público que comparece ao evento? Dá pra estabelecer algum recorte?

O púbico é heterogêneo. O fato de ser intergeracional torna o evento muito mais interessante. Você vê várias tribos, pessoas de idades diferentes – crianças tomando gosto pelo produto pelo olhar de seus pais ou pessoas da terceira idade que fazem disso um ritual…Gostam muito de comprar discos e, nos seus momentos de descanso e lazer, curtem o LP. Aliado ao fato de que o próprio LP oferece múltiplas oportunidades de diálogo com outros segmentos – seja com lançamento de livros, seja através da exibição de documentários, fotografias, exibição de arte ligada a isso. É muito legal

 

 

– Dá pra selecionar cinco discos que você levaria pra uma ilha deserta?

Selecionar só cinco seria uma tarefa muito difícil. Mas vou tentar escolher discos que me tocam muito:

– “Clube da Esquina”, com Milton Nascimento e Lô Borges (1972);
– “Quem é Quem”, com João Donato (1973);
– “Rubber Soul”, dos Beatles (1965);
– “Led Zeppelin IV” (1971);
– “Maggot Brain”, com Funkadelic (1971).

E eu deixo o “Kind Of Blue” (1959), do Miles Davis, de stand-by, caso algum desses cinco quebre ou arranhe.

 

 

– Alguma história ou causo interessante nesses anos de Feira?

A história mais interessante que eu vi, que eu nunca esqueci, aconteceu na quarta edição da Feira. Parou no meu stand uma moça com uma menininha muito pequena, de uns cinco, seis anos. A moça olhava os discos dentro dos caixotes e a menininha ficava na ponta dos pés, querendo olhar também. Daí eu sugeri à mãe que colocasse ela entre as caixas e, à medida em que a mãe ia passando os discos, a menina, nunca velocidade impressionante, dizia: “tem, não tem, tem, não tem” e aí ela, num determinado momento, parou no “Tatoo You”, dos Rolling Stones. Ficou parada, olhando. Eu perguntei: “e aí, pequena colecionadora, tem esse?”. Ela ficou parada, olhando. A mãe disse pra ela: “responde pro moço, que nós não temos, mas nós vamos levar”. Aí, enfim, ela comprou o disco e, logo depois, apontou para o marido que estava ali e me disse: “sabe o que é, moço? Ela ouve LPs desde a minha barriga. Eu e meu marido juntamos as coleções e ele é tão doido que conseguiu convencer a equipe médica que fez o meu parto, a colocar uma pick-up dentro da sala e minha veio ao mundo ao som de “Stairway To Heaven”. E quando nós nos demos conta, todo mundo ali estava chorando, inclusive os médicos.

Isso, pra mim, foi icônico.

 

 

– Fale um pouco sobre a ideia de homenagear grandes nomes da música brasileira na Feira ao longo do tempo.

Num determinado momento da história do evento, nós chegamos à conclusão de que era importante homenagear algumas pessoas que tiveram trabalhos relevantes, histórias interessantes ligadas a seus talentos, desde a época do LP. É evidente que muitos até hoje, por já terem falecido, não vão receber essa homenagem nossa. E outros, que já são muito grandes, estrelados, que já receberam prêmios muito maiores, aqui e fora do país, mas nós achamos que havia pessoas identificadas com o LP, sendo premiadas, ou não.

Daí resolvemos lançar o Troféu Feira de Vinil do RJ e já entregamos a muita gente relevante: Carlos Dafé, o grupo Azymuth, Arthur Verocai, Wilson das Neves, João Donato, Marcos Valle, Leny Andrade, Doris Monteiro, Joyce Moreno, Antonio Carlos e Jocafi e, neste ano, Antonio Adolfo. Todas essas pessoas fizeram trabalhos relevantes em LPs durante as suas carreiras, muitos procurados por colecionadores aqui e no exterior.

A gente sabe que não vai conseguir homenagear todo mundo que a gente queria. A partir dessa edição, o Troféu passa a se chamar Ivan Miguel Conti, baterista do Azymuth, falecido este anos, uma unanimidade entre pares, fãs e colecionadores, que levou a nossa música para tantos lugares no mundo, com o Azymuth.

Além disso, ele sempre foi muito gentil conosco e com o evento.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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