Clarice Falcão muda de prateleira em novo álbum

 

 

 

 

Clarice Falcão – Truque
34′, 12 faixas
(Chevalier de Pas)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

Clarice Falcão é uma pessoa interessantíssima. Articulada, inteligente, descolada, engraçada, a cantora e compositora carioca vem consolidando um estilo pessoal de fazer boa música pop já há algum tempo. Inicialmente vinculada a um approach mais (fo)folk, Clarice foi maturando a olhos vistos, sempre disposta a experimentar sonoridades que servissem como veículos ideais para suas letras confessionais. Isso aconteceu quando ela lançou seu terceiro trabalho, “Tem Conserto”, em 2019. Foi uma espécie de “turning point” em sua trajetória, justo quando ela abriu seu espectro sonoro e incorporou batidas dançantes e eletrônicas em sua música, conseguindo um salto qualitativo impressionante. Não foi só isso: Clarice estava às voltas com questões de saúde mental que influenciaram diretamente na concepção daquele álbum, lidando, ao mesmo tempo, com aspectos de depressão e euforia intensos. Com o passar o tempo, tais questões se tornaram mais claras, trazendo força para que a cantora seguisse com esta mesma abordagem. “Truque”, sucessor de “Tem Conserto”, dá continuidade a este processo com mais força e foco.

 

Mais que ser esperta na junção de letra e música (e arranjos), Clarice tem dois trunfos a seu favor – sua engenhosidade na escrita, capaz de ser arrojada, instigante e acessível, tudo ao mesmo tempo, e sua absoluta falta de pudor em falar de suas vulnerabilidades humanas. Se há um fio condutor em “Truque” é essa capacidade de falar de pequenos infortúnios cotidianos na lida constante com o amor e seus derivados, tudo com absoluta franqueza, expondo muitas vezes uma total incapacidade de gerenciar emoções de forma coerente. E isso se torna o maior fator de identificação do ouvinte com essas letras, porque, afinal de contas, quem consegue lidar com emoções com coerência? Clarice explora esse lado menos brilhante do sentimento, abrindo espaço para vários contos de desilusão que soam fofos e felizes de alguma forma. Por exemplo, em “Fundo do Poço”, segunda faixa de “Truque”, ela fala sobre o direito que tem de decorar onde se está, qualquer lugar. Ou seja, “estou ferrada, deu tudo errado, mas, pelo menos, eu quero dar uma enfeitadinha nessa draga em que estou”. Quem nunca, gente?

 

Outro momento glorioso é “Chorar Na Boate”, na qual ela assume o lugar, que poderia ser festivo e alegrinho, como um espaço conveniente para chorar. Tudo isso em meio a um arranjo neo-disco muito bem feito por ela e pelo parceiro, Lucas de Paiva, que, ao lado dela, produziu tudo o que se ouve em “Truque”. O som do álbum é muito bem gravado, com ótimas sacadas de arranjo e uma contemporaneidade inegável em suas doze faixas. Há ótimos momentos líricos como “eu me apaixonei num banheiro químico/qualquer buraco com um cheiro fétido/com você é nota dez” (“Podre”) ou “quem você quer que eu destrua/eu destruo pra você/quem você quer ver na rua?” (“Eu Destruo”) ou ainda “eu vi em você muito de mim/só eu que vi/não tava lá/eu que criei” (“Ideia Merda”). Essa maneira de ver as coisas, de usar como força uma eventual energia de destruição ou tristeza por conta de fracassos…Ou, como ela mesmo disse, “tudo isso é um truque”, mas, se trucamos aqui e ali, é para seguir em frente, sobrevivendo.

 

O melhor momento de “Truque” surge logo na abertura do álbum. “Dimensão” é uma canção pop primorosa, na qual Clarice se vale da visão de multiverso para admitir a única possibilidade de várias instâncias de sua vida serem concretizadas. Ela começa “não deu certo aqui, aliás, deu bastante errado” e se vale da existência – não comprovada, mas plausível – de uma “dimensão pra nós dois”, na qual ela, terá êxito. Ela prossegue, “de repente em outro plano a gente ainda é namorado” e extrapola para todas as possibilidades: “porque com certeza tem uma dimensão em que eu formei em Medicina, em que eu morri de forma trágica, em que eu tenho uma piscina”. E sentencia: “eu acredito piamente que, enquanto a gente vive a nossa vida, a gente vive outras vidas, só que a gente não é a gente”. Essa literalidade é exuberante e encaixá-la no baita arranjo elegante, meio Soul II Soul que Lucas e Clarice conseguem, é prova inegável de maturidade e talento.

 

 

O conceito do “Truque” se estende para além das canções, incorporando elementos visuais em cada faixa. Os videoclipes idealizados pelo diretor Lucas Cunha buscam brincar com as percepções e ludibriar os sentidos. “A ideia seria cada um ser um truque. Puxar o tapete do espectador de alguma forma, mesmo que seja um detalhe”, explica Clarice. “Truque” é o melhor álbum de Clarice Falcão e confirma seu talento para além da fofura inicial. Ela é um mulherão da porra. Ouça.

 

 

Ouça primeiro: “Dimensão”, “Chorar na Boate”, “Fundo do Poço”, “Eu Destruo”, “Ideia Merda”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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