Mais respeito com João Cabral de Melo Neto!

 

 

Semana passada, durante a formatura da cerimônia de diplomatas do Instituto Rio Branco o Chanceler, ernesto araújo não pode deixar de lado o modus operandi das ofensas proferidas, sem a mínima razão, aos grandes artistas do país pelos membros do atual “governo” que ocupa Brasília  e atacou o patrono escolhido pela turma, o poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto em um discurso longo demais e totalmente fora da realidade.

 

Seria impossível falar de algo que não tive estômago para ler em um espaço em que só transbordo minha paixão pela literatura. Passei meus olhos cansados por aquele desfile de ódio, desrespeito e rancor sem me demorar e tentei tirar da minha perplexidade força para homenagear toda a grandiosidade de João Cabral.

 

Assim cedo lugar ao Francisco Ramires, meu amigo, professor, escritor e mestre na poesia de um autor que faz da literatura do nosso país história e imensidão e parafraseio Mário Quintana, que João na sua modéstia dizia ser do primeiro time da poesia, enquanto ele seria jogador do segundo:

 

 

Eles, João, passarão, você passarinho.

 

 

Ao contrário do viés empobrecedor e disparatado do Chanceler ernesto araújo, a sensibilidade de João Cabral de Melo Neto (1920-1999) para o drama do homem pobre é tributária de suas vivências e leituras, dentre as quais não podemos desconsiderar o materialismo histórico que, para muito além da visão ideológica que toma o Itamaraty, é sobretudo um método de investigação, que o escritor pernambucano incorporou a seu método de criação poética, decididamente consciente da complexidade da vida. Sem isso, não seríamos capazes de entender e sentir os poemas desse escritor.

 

Ciente da complexidade da realidade e da tarefa de forjar seus versos a partir de elementos daquela, João Cabral costumava revisitar temas e reelaborar metáforas. Exemplo disso é a trinca formada por “O cão sem plumas” (1950), “O Rio, ou relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife” (1953) e “Morte e vida severina” (1956). Todos eles versam sobre o sertanejo pobre, o Capibaribe e os movimentos migratórios que alteravam paisagem e sociedade. Em missiva enviada a Drummond, em 09 de setembro de 1948, João Cabral de Melo Neto disse que trabalhava em um novo poema que era a explicação de sua “adesão ao comunismo”. E emenda: “Como essa palavra é explosiva, chamarei a coisa plagiando o José de Alencar: Como e por que sou romancista”. Este adendo dá o tom da alta-voltagem política da época. O poema em questão era “O cão sem plumas”. Mas o fato é que o sentido político-partidário dessa adesão é demasiadamente insuficiente e acessório para dar conta da postura e da mudança que se operava em João Cabral de Melo Neto, pois o que realmente importa é a leitura que o poeta fazia de textos do materialismo histórico e como eles foram incorporados a seu método de composição, no movimento de gestação criativa de uma ética e uma estética trançadas em versos, com refinada percepção dos assuntos humanos. A Guerra Fria passou, muros caíram. A obra de Cabral segue, vigorosa! Cabral não cabe na mesquinhez ideológica do momento.

 

Bem ao contrário dos julgamentos ligeiros, mal-intencionados e distorcidos, o conjunto formado por esses três poemas é revelador da capacidade que tem o materialismo de inspirar e forjar um olhar sensível para a complexa trama das determinações que marcam a vida. Cabral olhava para as pessoas e para o rio, para os seres humanos e as paisagens pelas quais se moviam e onde lutavam pela vida, para bem além da sobrevivência. Seus versos apontam para o homem (gênero humano), o meio e o trabalho, sendo este na acepção mais ampla da palavra, qual seja, produção da vida em seus múltiplos aspectos: economia, política, arte, religiosidade, técnicas e tecnologias, saberes etc.

 

Engana-se quem antagoniza o materialismo histórico e as dimensões espirituais da vida. “Morte e vida severina” é uma obra primorosa quanto à percepção de que a religiosidade seria uma determinação incontornável para quem desejava se referir, literariamente, ao sertanejo. Este “tipo” social tinha na religião e nos saberes eivados pela religiosidade uma forma de expressão de si: anseios, dores, desejos, esperanças. A partir de suas leituras, João Cabral de Melo Neto amadurecia a ideia de que a aridez do sertão era uma objetividade necessária (incontornável, todavia passível de transformação) à qual homens e mulheres pobres se resignavam e contra a qual, simultaneamente, lutavam, para que a vida não terminasse de ser fiada antes de 30 anos. A aridez da pedra grosseira era o “suporte” pelo qual era constituída uma subjetividade peculiar àquelas regiões inóspitas, àquela gente que ficava aquém do contrato social, sujeitas a equacionamentos políticos calcados em omissão, esquecimento e violência: “morte matada”.

 

Mesmo não pertencendo à mesma comunidade religiosa, João Cabral de Melo Neto tinha sensibilidade para aquele drama humano. Sensibilidade construída a partir de memórias de infância, leituras muito variadas e imenso trabalho reflexivo. No maravilhoso auto de natal materialista que nos deixou, o infinito não é transcendental, mas imanente ao mundo, à vida, construído com os fios de recordações (à maneira de Proust) dos cheiros das folhas de cana e dos ruídos dos ventos que percorriam os canaviais, do movimento infindo das ondas do mar, nas costas de Recife. No belíssimo trecho final, a esperança necessária à vida é “respondida” por ela mesma, a vida, em um movimento de autopoiesis. Pois da imanência do mundo retira-se, também, beleza, esperança e respeito pelo drama humano:

(…)

é difícil defender,

só com palavras, a vida,

ainda mais quando ela

é esta que vê, Severina

mas se responder não pude

à pergunta que fazia,

ela, a vida, a respondeu

com sua presença viva.

E não há melhor resposta

que o espetáculo da vida:

vê-la desfiar seu fio,

que também se chama vida,

ver a fábrica que ela mesma,

teimosamente, se fabrica,

vê-la brotar como há pouco

em nova vida explodida;

mesmo quando é assim pequena

a explosão, como a ocorrida;

como a de há pouco, franzina;

mesmo quando é a explosão

de uma vida Severina.

Debora Consíglio

Beatlemaniaca, viciada em canetas Stabillo e post-it é professora pra viver e escreve pra não enlouquecer. Desde pequena movida a livros,filmes e música,devota fiel da palavras. Se antes tinha vergonha das próprias ideias hoje não se limita,se espalha, se expressa.

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