Mais pistas para outras tropicálias

 

 

Em julho de 2007, a revista Piauí publicou um texto assinado por Cadão Volpato, vocalista e letrista da banda Fellini. O tema central são seus encontros com Renato Russo antes da Legião Urbana gravar seu primeiro LP. Era 1984, ano em que a Fellini começara seus ensaios. Cadão reitera uma narrativa que hoje já é consagrada sobre sua banda: “Antes de acabarmos, em 1990, fizemos várias fusões de música brasileira com rock.”

 

É de tal “fusão” que trata este texto, apostando que temos aí uma outra das vias pelas quais se cultivou um inusitado encontro do rock nacional dos anos 80 com sensibilidades tropicalistas. O encontro, nesse caso, tem ares de enigma, pois não partiu de uma busca planejada. Com a palavra, o parceiro de Cadão, Thomas Pappon, multi-instrumentista da Fellini: o que conseguiram, como conta no livro de Lorena Calábria sobre o primeiro álbum de Chico Science & Nação Zumbi, “era muito mais resultado da estética do ‘faça você mesmo’ do que com qualquer intenção de misturar MPB e rock ou de dar uma roupagem roqueira a samba e baião”.

 

Isso não torna menos verdadeira a avaliação de que a Fellini produziu sim um “pós-punk tropical”. Serve para nos instigar a perceber que os caminhos que resultaram em versões tropicalistas do rock nos anos 80 brasileiro são múltiplos. A trilha explorada pela Fellini não tem as selvas e nem passa pelas mesmas leituras musicais de uma Gang 90 & Absurdettes e de uma May East. O ponto de partida parecia menos promissor.

 

O primeiro álbum da Fellini foi um rebento dos muitos possíveis e realizados na fértil cena paulistana da primeira metade do anos 80. Pappon havia participado da Voluntários da Pátria, da Smack e das Mercenárias e chegou a ensaiar com a Gang 90 no início de 82. Quase nada nas faixas de O Adeus de Fellini dialogava com a “música brasileira”, se por isso se entende a MPB e o samba. Os modelos da banda vinham de outros continentes, como revelava o batismo do primeiro ensaio, ocorrido exatamente quatro anos depois que Ian Curtis, vocalista da Joy Division, sumira dentre os mortais. O lance, confessa Cadão Volpato no mesmo texto para a Piauí, era “fazer a foto de divulgação a mais sorumbática o possível, de preto, com caras tristes”.

 

Mas havia algo, em certas melodias das cordas e vocais, em toques da percussão, que jogava uma pista. É preciso prestar atenção nas guitarras de “História do Fogo”. Há muita esquisitice e esquizofrenia nas inserções de vozes estranhas, nos tantos ruídos tão insuspeitos quanto uma máquina de escrever, na música com letra em alemão, nos trechos de sabe-se-lá-o-quê. A faixa de abertura, surrealista e instigante como a maior parte das letras, fala de alguém que viu “uma ema no Palácio da Alvorada”. Nas suas dissonâncias, a Fellini anunciava uma espécie de pós-punk torto, com um quê de originalidade.

 

Vale notar, contudo, que nas ilhas britânicas, de onde vinham as principais inspirações da Fellini, o pós-punk se desenvolvia, em parte, perseguindo o resultado de explorações por sonoridades exóticas. Música caribenha, africana, oriental estava sendo processada pelos jovens que viam futuro além do punk. Com sua própria visão de tudo que rolava, Malcolm MacLaren (ele mesmo, o empresário da Sex Pistols) promoveu uma banda chamada Bow Wow Wow, cujo LP de estreia, em 1981, trazia uma versão para “Aquele Abraço”, de Gilberto Gil. Ao que parece, sem dar os devidos créditos…

 

Na busca de referências exóticas pelo pós-punk, haveria espaço para a bossa nova, que vai estar presente nas misturas de bandas como Style Council e Aztec Camera, ambas com seus primeiros LPs lançados em 1983. Não sei se essas bandas estavam entre as inspirações da Fellini. Elas faziam um som muito mais acessível do que os brasileiros, o que as direcionou para grandes gravadoras, ao passo que a Fellini insistiu na independência, gravando seus primeiros três álbuns com a mítica Baratos Afins. Mas a Stranglers, no LP Feline, de onde os paulistanos tiraram seu nome (inspiração, claro, fortalecida pela referência do cineasta italiano), soa quase tão pop quanto as bandas aqui mencionadas.

 

Em 1986, Cadão e Pappon, separados dos músicos que os acompanharam no primeiro álbum, Ricardo Salvagni e Jair Marcos, lançam o caseirissidamente produzido Fellini Só Vive Duas Vezes. Dessa vez, as aproximações com a “música brasileira” ficam evidentes e as “misturas” vão além do que se poderia esperar de uma banda pós-punk, nacional ou não. Mesmo assim, elas se concentram em três faixas: a desconstruída “Mãe dos Gatos”, a bossa nova “Domingo de Páscoa” e o samba “Tabu”. Uma novidade do segundo álbum é o emprego de uma rudimentar bateria eletrônica, o que confere a essas músicas um timbre que confirma a dissonância que já caracterizava as criações da banda.

 

As batidas sincopadas produzidas novamente por uma drum machine marcam a sonoridade de 3 Lugares Diferentes, de 1987. Parecem um eletrônico bolero (nome, aliás, duas faixas do primeiro álbum) e conferem mais identidade à banda, que volta a ter a participação de Ricardo. As composições mantêm uma grande diversidade, mas um sutil deslocamento leva a uma fusão mais forte entre as inspirações europeias e a música brasileira. “Ambos Mundos”, “Rio-Bahia” e “Teu Inglês” deixam isso nítido, a percussão “brasileira” interagindo com as cordas “europeias”, sempre com a voz atravessada de Cadão.

 

“Zum Zum Zum Zazoeira” vai além, trazendo o baião para a paleta da Fellini. A letra sugere uma viagem ao interior do Brasil, em um álbum marcado exatamente pelos deslocamentos, anunciados desde a capa com fotos (duas verdadeiras, uma falsa) dos músicos em La Paz, Bali e Veneza. Cadão canta para nosso deleite: “um conto tonto um bumba-meu-boi na poeira / sai debaixo da relva e mastiga as estrelas / vem do meio da selva escura só zoeira”. Por um breve momento, a Fellini descobre a selva.

 

Esse encontro com a “música brasileira” tem uma característica interessante. Não é tanto o resultado de uma busca de raízes ou de algo essencial – como costumeiramente se define o samba e outros gêneros regionais. É mais a resultante provisória de explorações e afloramentos musicais, antropofagia apoiada em baixas tecnologias. Como sugere Fernando Gomes, “Fellini é o elo entre bossa-nova, techno-pop e rock inglês”, “é o encontro de Bezerra da Silva, os Mutantes de Arnaldo Baptista e New Order”. Arnaldo, aliás, seria homenageado com uma versão para “Cê tá Pensando que Eu sou Lóki?”, incluída em na coletânea Sanguinho Novo.

 

Gomes é divulgador de outro projeto musical dos anos 80, cuja proposta ajuda a deixar mais claro o que estou a sugerir. Chance foi um trio que deixou poucos registros, com destaque para sua participação na coletânea Não São Paulo, também lançada pela Baratos Afins em 1985. Uma das faixas dessa compilação é “Samba do Morro”. Cortando a batida de samba produzida por uma bateria eletrônica e acompanhada por um violão, o teclado sugere outras atmosferas, assim como a voz feminina que não ficaria mal em uma música do Portishead. O “morro” do título é, mais do que um lugar (o alto de uma montanha russa?), a conjugação de verbo. Fusão: samba gótico eletrônico.

 

Em 1990, a Fellini, com a formação original retomada, lança Amor Louco, por outra gravadora independente, a Wop Bop. Para muitas pessoas, é o álbum que coroa suas criações, embora 3 Lugares Diferentes tenha sido eleito pelos críticos da revista Bizz o melhor álbum nacional de 1987. Amor Louco é favorecido pela produção reforçada, e prossegue nas fusões musicais, talvez já a partir de um projeto mais deliberado, que, contudo, nunca cede às fórmulas únicas. Considerado por Gomes o mais “emblemático, inovador e eclético” trabalho da banda, merece o elogio máximo: “samba eletrônico como Brian Eno e David Byrne não fariam melhor…”

 

Limito-me a fazer uma relação entre duas pontas do trajeto da Fellini. Amor Louco abre com “Chico Buarque Song”, um samba felliniano com letra em inglês. O idioma estrangeiro – e naquela época várias bandas alternativas brasileiras estavam se rendendo a ele – é rasurado quando as palavras “Chico Buarque” são cantadas. A estranheza sonora é inevitável na inserção do nome de um dos principais expoentes da MPB em uma letra em inglês.

 

“Rock Europeu” é a segunda faixa de O Adeus de Fellini. A música começa – e se alguém tivesse anunciado que se ouviria uma banda brasileira, acharíamos se tratar de engano, pois parece um pastiche de um rock da New Order, a banda que herdou os instrumentistas da Joy Division. A letra desponta: é português cantado por um brasileiro. “Rock europeu, rock europeu”, ele provoca, “você nem imagina o que você não conheceu”. É possível sentir um incômodo, acentuado pelo verso, talvez uma pergunta, “E só dentro de um hospício se vive na América”. Uma percussão sutil quebra a linearidade da levada principal.

 

“Rock Europeu”, eis o meu argumento, é o ponto de partida para a chegada em “Chico Buarque Song”. No meio desse caminho, uma estação evidente seria “Teu Inglês” – como as outras duas, uma das faixas mais executadas da Fellini. Percorrendo outra fusão musical, a letra canta: “Washington acha engraçado o teu inglês? Please, come back”. Nessa fusão, os idiomas se misturam para apontar um destino, ou um retorno. Nessa fusão, não sabemos o que é “rock europeu” e o que é “música brasileira”. Melhor: o rock se tornou música brasileira!

 

Cruelmente, quando a Fellini teria atingido seu auge ela chega ao verdadeiro fim. Pouca gente em 1990 prestou atenção a Amor Louco. Posteriormente, a banda voltaria a se reunir para shows e até para gravar novas faixas. Mas se prefere lembrá-la por seus lançamentos entre 1985 e 1990. Em 2020, músicas inéditas daquela década de 80 foram lançadas embaladas em uma caixa bacaníssima, oferecendo a ocasião para algumas apresentações.

 

Entre o público que acompanhava a Fellini nos anos 80 estava uma galera de Recife. Fitinhas com gravações dos discos da Baratos Afins acompanhavam os jovens em reuniões praianas. Entre esses jovens estava Chico Science, que, com a banda, fez questão de cumprimentar Cadão Volpato nos corredores da TV Cultura quando ainda não sabiam que o mangue bit lhes abriria as portas do mundo. Ali estava a pista de que a Fellini havia participado dos caminhos que levaram a uma das mais expressivas e tropicalistas “fusões de rock com música brasileira”.

 

Mais pistas para não deixar as elucubrações deste texto no vazio das arbitrariedades? Chico Science & Nação Zumbi gravaria uma versão para “Criança de Domingo”, música de Cadão em um projeto sucedâneo da Fellini – chamado Funziona Senza Vapore – que chegou em Recife por meio de outra fitinha cassete. “Chico Buarque Song” seria registrada em um álbum da Céu, com produção de Pupilo, da Nação Zumbi. Antes de tudo isso, em 1994, como parte do projeto Rec-Beat Unplugged, que convidava bandas para interpretarem músicas de seus ídolos, Chico Science escolheu homenagear… Fellini.

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

4 thoughts on “Mais pistas para outras tropicálias

  • 2 de setembro de 2024 em 15:50
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    Zum Zum Zum Zazoeira me lembra pantanal.

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    • 18 de janeiro de 2021 em 13:33
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      Obrigado pela leitura, Douglas!

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  • 16 de dezembro de 2020 em 14:26
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    Você Nem Imagina, que sugeri para acompanhar este texto, dá uma boa visão de conjunto das composições da banda. Mas são regravações. O ideal mesmo é ir em cada um dos quatro álbuns e escutar as versões originais.

    p.s. O álbum em que Céu incluiu sua versão de “Chico Buarque Song” se chama… Tropix.

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