Kamasi Washington – O Verdadeiro Pantera Negra

Vocês sabem, há o jazz. Sim, o estilo, das glórias do passado, de tantos mestres e tradições. De Miles Davis, John Coltrane, Cannonball Aderley, Bill Evans, gente que entrou para a história do século 20 – e da música popular – como exploradores, esticadores de limites, fazedores de obras de arte, latu sensu. E, bem, há o jazz enquanto ideia, enquanto forma de pensar a música popular. E é neste segmento de sentido que está Kamasi Washington. Até porque, meus amigos e amigas, não dá pra reproduzir hoje, pleno século 21, as mesmas condições que proporcionaram o surgimento do jazz do início do parágrafo, lá por meados do século passado. E Kamasi sabe disso.

É muito fácil vermos músicos que se aplicam em reproduzir as texturas e belezuras do passado, para o deleite de um monte de pessoas que não conhecem o significado do termo “jazz”. Tudo bem, a gente não vai esperar erudição e noção de todos, ainda mais quando é preciso atenção para compreender plenamente que jazz é ir contra convenções e improvisar diante de uma estrutura opressora. Se os músicos mencionados como mestres do estilo enfrentaram todo tipo de discriminação para oferecer uma janela de expressão e liberdade para negros e pobres americanos em outros tempos, tal missão ainda está em validade e a visão de Kamasi entra exatamente aí. Seu sucesso e genialidade estão presos a estas duas interpretações – do jazz como tradição e do jazz como subversão.

Ele traz em si a herança de dois saxofonistas supremos: John Coltrane e Pharoah Sanders, não só em técnica, mas na perspectiva de soltar amarras e buscar expressões ideais. Ambos, especialmente Coltrane, abriram sua visão para atingir uma forma de comunicação com o “divino”. Algumas pessoas hão de lembrar de “A Love Supreme”, disco que Coltrane lançou no início de 1965, que subvertia estruturas, conceitos e abraçava novos formatos em busca de  contato com … algo. É como procurar alguma coisa que não vemos, apenas sentimos e que SABEMOS que está lá. Tal movimento por parte de Coltrane, num tempo – segunda metade dos anos 1960 – em que o jazz buscava modernizar-se em face ao furacão do rock, abriu caminho para novas e geniais criações. Nesta esteira veio Pharoah Sanders, discípulo e gênio ao mesmo tempo. Discos como “Elevation” (1973) e “Karma” (1969), este último trazendo o seu maior sucesso, “Creator Has A Master Plan”, uma espécie de Dez Mandamentos de jazz espiritual para as gerações futuras.

Kamasi Washington entra aí. Ele é um herdeiro desta tradição, mas, como é inteligente e talentoso, saber que precisa entendê-la no mundo de hoje, 2019. Então, ele insere estas noções na abordagem da música negra via hip-hop e eletrônica, atualizando o discurso e as modalidades. Ao mesmo tempo, acrescenta suas próprias impressões, entre as quais estão uma saudável aproximação com a música pop de algumas décadas atrás e de hoje. Também há uma mistura legal de visuais afrofuturistas aqui e ali e a vontade de se inserir em uma linhagem que também comporta o afrobeat e a soul music. Nada em Kamasi parece olhar pra trás e este é um de seus charmes para estar na ordem do dia. Ele parece novo aos olhos e ouvidos de uma maioria de formadores de opinião. Sua abordagem faz remissão direta ao hip-hop jazzístico de gente como A Tribe Called Quest, Guru e Digable Planets. Sua música troca os samples pelos sons ao vivo.

Seus dois álbuns são os melhores trabalhos de jazz do século 21 até agora. “The Epic”, de 2015 e “Heaven And Hell”, do ano passado. Tudo ali é tão brilhante e magnífico que fica difícil destacar uma ou outra gravação. Aos ouvidos de gente curiosa e interessada, a experiência de estar diante de uma obra assim deve ser absolutamente transformadora e irresistível.

Agora temos a segunda chance de ver o homem ao vivo por aqui. Depois de passar por Rio e São Paulo divulgando o primeiro disco, Kamasi volta para shows em Curitiba, Rio, São Paulo e Porto Alegre, sendo que, na Cidade Maravilhosa, perto de onde estamos fixados, ele se apresentará no adequadíssimo Circo Voador, dia 23 de março, através da ação do Queremos, que conseguiu apoio para trazer o sujeito para essas plagas. Ponto pros envolvidos.

É um show que não pode ser ignorado. Poucas vezes estivemos diante de um artista em plena forma, criativa e técnica, consolidando seu nome na história. Uma lindeza. Se há um Pantera Negra além de Donizete, este só pode ser Kamasi Washington.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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