Julico – Ikê Maré

 

 

Gênero: Rock, alternativo

Duração: 40 min.
Faixas: 13
Produção: Julico
Gravadora: Toca Discos

4 out of 5 stars (4 / 5)

 

Julio Andrade, mais conhecido como Julico, chega ao seu primeiro trabalho solo, motivado e cheio de brilho. Guitarrista e vocalista do The Baggios, briosa formação sergipana de rock, ele procura seguir por uma via sonora alternativa neste belo “Ikê Maré”, um disco que faz alusão às suas origens, infância, reminiscências e memórias, num movimento de exaltação de sua identidade pessoal – e musical – para obter as referências necessárias para exercitar sua musicalidade. Se o trabalho dos Baggios tem muito de rock e poeira da estrada, Julico solo é um mergulho nas águas mais coloridas e mornas da psicodelia brasileira, um leito de rio convidativo, que já banhou muita gente, de Mutantes, Novos Baianos a Violeta de Outono, permitindo sempre que seus frequentadores peguem emprestadas as cores que desejarem. Sendo assim, “Ikê Maré” surge como um álbum genuíno de música brasileira moderna e ágil, psicodélica e cheia de carga autoral, o que é sempre bem-vindo. Resumindo, é um discaço.

 

O grande barato de “Ikê Maré” é que ele é quase todo tocado pelo próprio Julico, mas não tem som de disco de um homem só. O som é de banda, de gente em sintonia e a maneira como as influências da música negra nacional entram nas faixas é absolutamente natural, gerando uma procissão de sambas e funks adoravelmente tortos e mestiços, que compõem este painel que une São Cristóvão, no interior de Sergipe a, digamos, Chicago, no estado americano do Illinois. A musicalidade é absolutamente natural e inevitável, ainda com espaço para letras e falas que relatam a crueza da passagem do tempo, a falta de evolução nas pessoas, as agitações sociais que chegam pelo noticiário e pela visão da população de rua a crescer. A fome, a miséria, o desentendimento, tudo está contido nestas 13 faixas espontâneas e que traduzem as intenções de Julico ao lançar um disco solo. Se o The Baggios é mais um grupo de contadores de histórias no meio do caos, o cantor e compositor deste trabalho é mais um repórter/espectador da história. Com ares poéticos.

 

O single “Nuvens Negras” é o maior exemplo. Parece uma canção que você poderia ouvir numa emissora AM do Brasil setentista. Tem metais, tem levada dançante, que pode ser de samba, de algum ritmo nordestino e, ao mesmo tempo em que é regional e absolutamente brasileira, exibe teclados e guitarras que são nitidamente influenciadas pelas sonoridades funk daquele tempo. A faixa-título, que abre o disco, tem timbres sintéticos e orgânicos de bateria, inequívocas guitarras à la The Baggios e uma pegada encrespada, que lembra muito Novos Baianos misturado com White Stripes e pitadas de mundo livre s/a. Influências autênticas que se mesclam como se fosse inevitável. O soul/funk setentista volta a dar as caras em “Aonde Viemos Parar”, que tem maravilhosos timbres de guitarra em meio a teclados e vocais psicodélicos – “que o amor se espalhe e esclareça a verdade”.

 

As melhores canções do disco, no entanto, são as que se arvoram a viajar pelas águas da diáspora negra, com destinos diversos: tem a ótima “Eu São/Curtis Says”, que homenageia o soulman Curtis Mayfield, com dignidade e brio. Tem a dobradinha “Caípe Velho”/”Caípe Novo”, duas faixas que marcam território e voltam ao passado com ares de presente que olha para o futuro com otimismo. E tem a ótima “São Cristóvão via Níger”, que conecta Brasil, África e o Atlântico Negro como vértices do mesmo triângulo reto, equilátero e equivalente de sentimentos e sofrimentos.

 

“Ikê Maré” é um atestado de maturidade e invenção, algo que reafirma o talento de Julico e o coloca além de um integrante de banda, deixando o ouvinte com muito mais curiosidade sobre o que ele pode fazer em novos trabalhos solo no porvir. Uma belezura.

 

Ouça primeiro: “Nuvens Negras”, “São Cristóvão via Níger”

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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