Depois da Corrida do Ouro

 

 

Certa vez, ainda no século passado, acampando na localidade de Riozinho (também conhecida como “Little River”), onde está situado o Parque Nacional dos Condutos, no Rio Grande do Sul, uma experiência psicodélica matinal com uma meiota de LSD – planejada para ser tomada pela manhã e atravessar o dia – acabou revelando-me novos predicados da maestria extramusical de Neil Young. Nesse dia, o espírito do crazy horse canadense fez-se presente. Por Timothy Leary e Ken Kesey, eu juro o ter sentido.

 

A outra metade foi ingerida por um parceiro, o qual não convém revelar o nome. Preparamo-nos para a trip, que seria longa e desgastante, física e cerebralmente, tomando um farto café da manhã. No alforje, colocamos uma dúzia de laranjas (segundo a crença de que as frutas cítricas potencializam o efeito da lisergia) e, pé sobre pé, seguimos a trilha na direção às corredeiras e condutos.

 

Little River fica onde começa (ou termina) a Mata Atlântica. Sumé, a entidade divina dos índios brasileiros – que durante milhares de anos foram senhores absolutos destas terras – um dia provavelmente deve ter passado por ali, descerrando a mata até o Peru para soerguer a majestosa trilha de Pêabirú: o Caminho da Montanha do Sol.

 

Comemos todas as laranjas, aguardando os desejados efeitos do LSD de boa qualidade. Época jurássica pré-mp3 player, nos virávamos com o som de um gravador de repórter. Isso acarretava levar, na mochila, fitas e mais fitas. Ou, então, poucas (e boas) cassetes. Nessa ocasião em especial, uma de nossas poucas fitinhas era a obra-prima metade ao vivo metade elétrica “Rust Never Sleeps”, em que Neil Young, em 1979, mais uma vez presenteava de mão-beijada a humanidade com um precioso punhado de majestosas canções. A fita era uma cromo preta 90 da Basf (quem lembra?) – daquelas bem fedidas.

 

Na ordem, o metálico gravadorzinho mandava ver: “My My, Hey Hey (Out of the Blue)”, “Thrasher”, “Ride My Llama”, “Pocahontas”… Dez horas da manhã: o negócio começava a bater às ganhas. Pleno verão no Rio Grande do Sul – o Rei Sol brilhava na plenitude alaranjada de seu flamejante esplendor. E nós, os dois viajantes psicodélicos, percorríamos caminhos cada vez mais labirínticos em nossos psicodélicos estados mentais.

 

Como sempre, eu carregava o gravador no bolso da bermuda: o som zunia. Um vespeiro a vibrar na cabeça e no corpo ao mesmo tempo. Já devia estar tocando “Hey Hey, My My” pela quarta ou quinta vez consecutiva. Um mantra a perpetuar-se eternamente, se assim fossem os desígnios do Universo.

 

Positivamente loucos a cada canção que Neil repetia-nos generosamente, sem jamais negar fogo, eis que, ao escalar uma pedra, sucedeu-se a tragédia: o preciso sonzinho escapuliu para as caudalosas garras das corredeiras de Little River. Neil Young fora-se cantando e tudo. Sua última palavra que ainda conseguimos ouvir foi um “Hey”…

 

A viagem quase parou por ali mesmo.

 

Esperançoso, estiquei o braço para dentro d’água: “Ao menos para tentar recuperar o aparelho”, cheguei raciocinar, em meio a loucura, e mesmo sem a esperança de que teria a música – o mais importante – de volta.

 

Levado pela pulsão psicodélica, apalpei de forma indômita e o fundo do rio, entre plantas, pedras, galhos, lama e insetos. E, após insistente e demorada busca, quase prestes a desistir, repentinamente senti algo de formato meio “quadrado” submergido no fundo do rio. Quase não pude acreditar. Era o bendito gravadorzinho! Puxei o objeto de volta e, como quem conquista um troféu, o ergui ao alto, exultante como deve ter exultado o neandertal que pela primeira vez ateou fogo.

 

E o guerreiro elétrico, espantosamente, mantinha-se funcionando.

 

Mas a música, que era a boa, não saia. “Onde fora parar?”, ainda tentei raciocinar, fritando. Então, como dois lagartos enamorados, acasalei fita & gravador no cimo de uma pedra e deixei que o “casal perfeito” secasse atingido pelos ultra radiantes raios solares que fazem do verão gauchesco um dos mais quentes do Planeta Terra. Recordo ainda ter feito uma mandinga qualquer, rogando às divindades que habitam as florestas tropicais para que dessem uma forcinha praquela valorosa dupla – que maravilhosas percepções haviam nos proporcionado até ali – pudesse voltar ao trabalho.

 

Quando, então, nada mais restava-me fazer banhar-me nas gélidas águas do Rio dos Sinos (cujo nome se dá por causa de sua sinuosidade e de suas muitas curvas). Depois, após enrolar um fuminho de palha e espraiar-me sobre uma superfície rochosa, abandonei-me às emanações solares.

 

Quando finalmente despertei da letargia, haurindo uma mista sensação de bucolismo e onirismo – e, é claro, ainda encontrando-me sensorial e psiquicamente sob alto grau psicodélico (a origem do termo é grega: significa “o que faz brilhar a alma”), o guerreiro elétrico já encontrava-se absolutamente seco.

 

Fui lá resgatar “Rust Never Sleeps” de seu banho de sol e, com o carinho e ternura necessários, como deve ser o dispensado a todas as damas, inseri o feminino objeto no compartimento – ato erótico, sem dúvida. E, com certa apreensão (ou melhor: com insuportável apreensão), dei o play. O bravo gravadorzinho de repórter, com toda sua limitada amplificação, bramiu a plenos pulmões:

“Hey hey, my my / Rock-and-roll can never die / There’s more to the picture / Than meets the eye / Hey hey, my my / Out of the blue and into the black / You pay for this, and they give you that / Once you’re gone, you can’t come back / When you’re out of the blue / The king is gone but he’s not forgotten / Is this the tale of Johnny Rotten?”

 

Coisas mágicas acontecem quando Neil Young está no ar.

 

E mesmo dentro d’água.

 

Cristiano Bastos

Cristiano Bastos é jornalista. Um dos autores do livro Gauleses Irredutíveis – Causos & Atitudes do Rock Gaúcho. Escreveu Julio Reny – Histórias de Amor e Morte, Júpiter Maçã: A Efervescente Vida e Obra, Nelson Gonçalves – O Rei da Boemia e o livro de reportagens Nova Carne Para Moer. Também dirigiu o documentário Nas Paredes da Pedra Encantada, sobre o álbum Paêbirú, de Lula Côrtes e Zé Ramalho. Atualmente trabalho no projeto 100 Grandes Álbus do Rock Gaúcho, que se encontra em campanha de financiamento pela plataforma Catarse: https://www.catarse.me/100GrandesAlbunsDoRockGaucho

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