Jesus, um desconhecido dessa gente
Eu estudei onze anos em um colégio católico, o Santo Agostinho, no Leblon, bairro chique da Zona Sul carioca. Poderia ter me tornado uma pessoa totalmente diferente do que sou, mas o tempo me fez quase ateu e de esquerda. Tenho motivos para ser assim, motivos só meus, assim como as pessoas têm os delas por serem como são. Este texto não pretende invadir as crenças alheias, mas questionar o que fizeram com um aspecto muito importante do catolicismo, talvez o mais decisivo deles: Jesus.
Ao longo do tempo no CSA, Jesus esteve presente em todas as salas de aula e em aulas de Religião, as quais tivemos até o antigo Primeiro Grau. Na verdade, como geralmente o são, estas aulas eram de Catolicismo, Catecismo, qualquer coisa assim. E eram longas, maçantes, chatas, descoladas da realidade. A gente precisava levar a Bíblia, ler, aprender a encontrar textos dentro dela, entender a lógica dos versículos, capítulos e tudo mais. Um saco. Desde cedo, apesar de ter rezado algumas vezes na vida, eu tinha dificuldade em ver esse canal de contato pré-determinado com Deus. Eu sempre achei que esta habilidade de se conectar com Ele era inata, algo que já trazíamos de fábrica, desde sempre. E a opressão religiosa, aos poucos, foi me soando como uma forma de controle, de compromisso, de dívida sendo constantemente paga. Afinal de contas, segundo o catolicismo, Jesus morreu crucificado para nos salvar de nós mesmos, da nossa injustiça e do nosso pecado. Por isso, já nascemos no vermelho, no negativo. Eu não acredito nisso, mas, ratifico: sou eu. Meus pensamentos. Você não precisa concordar.
Este preâmbulo é para confessar minha perplexidade com uma distorção muito poderosa da imagem de Jesus. Se olharmos bem, sua “fama” e sua magia vêm da conceitos aplicados em sua própria vida, especialmente tolerância, gentileza, compreensão e bondade. Como filho de Deus, Jesus representa uma chance de nos redimirmos através de sua palavra, nos reconhecendo nos outros e entendendo que somos iguais diante dos olhos do Criador. Certo? Essa parte das aulas eu não esqueci. Mas aí você vai vendo que a coisa não é bem assim. Esta ideia, este conceito que norteiam o próprio Cristo Jesus, vão sendo remixados ao longo dos séculos. Sai desta visão comunal (comunista?) de igualdade e se cola a governos, reis e soberanos em disputa constante por território e poder. Daí, por conta disso, estas ideias de bondade etc, vão sendo usadas como justificativa para imposições e conflitos, na base do “vocês TEM que deixar o meu exército dizimar os que não acreditam na bondade que eu defendo”.
Conversem com negros, árabes, índios, orientais e vários povos não cristãos sobre isso. O Cristo e sua cruz viraram símbolos de nações sequiosas em disputa com outras, usando outras cruzes. Milhões foram mortos no processo, outros milhões perderam sua cultura original, mais milhões nascem e morrem sem saber de onde vieram. O Cristo, coitado, interferiu e cooptou bilhões, através de seus representantes e defensores. Mas, você lembra, a ideia original nada tem a ver com isso, certo? Cristo, tolerante, perdoando, se sacrificando, não pedindo nada em troca…
Por isso decidi escrever essas linhas sobre o atentado à produtora carioca Porta dos Fundos, sofrido como represália a um especial de Natal no qual Jesus é um homem LGBTQ+. Cristo, tolerante, perdoando etc, não pode ser um gay. De jeito nenhum. Como assim você vai permitir que Jesus suscite um comportamento desaprovado por seus representantes? Não pode. Mesmo se Jesus voltasse à Terra, ele não poderia ser gay. Ele não poderia perdoar, não poderia tolerar. Ele teria que combater a diferença, nunca tentar entendê-las. Se o mesmo especial de Natal mostrasse Cristo tal qual um Rambo, metralhando minorias, talvez não houvesse atentado.
Essa ideia de Jesus combatente não é nova. Os romanos, ao incorporaram o cristianismo e o catolicismo, mesclaram o Cristo ao seu Estado. Mais tarde os espanhóis, os portugueses, os italianos, todos fizeram algo parecido em seu passado. Mas o que temos hoje é cruelmente pior. Segundo o documentário “A Família”, que está disponível na Netflix – a mesma que veiculou o programa do Porta dos Fundos – o conceito de Jesus foi intencionalmente alterado há poucos anos. Em certa altura do segundo episódio, um treinador de recrutas para a organização que dá o título à série, diz que “Jesus não pode ser fraco. Ele precisa ser forte para não ser derrotado. Ele, se existisse hoje, seria um jogador de futebol americano, um fuzileiro naval”.
Quando vi isso, me lembrei do meu colégio. Se houve algo retido ao longo do tempo por mim foi a simpatia com Jesus. Até um certo compadecimento de minha parte por conta de sua tragédia pessoal, porém, nunca enxerguei em sua vida um único ato de fraqueza. Pelo contrário, Jesus era enorme, forte, um gigante. Sua postura confundiu belicosos, desafiou poderosos e encarnou a tolerância como uma forma de vida, de se chegar à comunhão com tudo e todos. Ser crucificado e aviltado como ele foi, deve exigir o máximo de força física e mental.
Tal percepção, no entanto, requer certa sutileza, que esta gente maligna não dispõe. É mais fácil encontrar a força na arma, na agressão, na provocação, coisas que Jesus jamais faria e, possivelmente, condenaria, mas perdoaria porque, bem, ele era o cara. Ao contrário dessas pessoas aí. Talvez meu juízo de quase ateu não seja o melhor a se fazer sobre ele, mas tenho certeza do que vi e ouvi há tempos sobre Jesus. Não sei se eu acredito totalmente no tolerante, não me vejo em débito com nada nem ninguém, mas, certamente, eu duvido e repilo o truculento, o Jesus miliciano e propagador da censura e da injustiça, que tentam mostrar por aí.
Jesus era gente boa. Não há como negar.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.
Belo texto. Se Cristo voltasse, com certeza seria crucificado novamente pelos “cidadãos de bem”, essa corja.