Intimidade e delicadeza com Vinícius Cantuária e Jesse Harris
Quando a cortina do Teatro Rival Refit se abriu, Vinícius Cantuária e Jesse Harris tocaram os primeiros acordes de “Surpresa” – canção que dá nome ao disco gravado em parceria pelos dois, em 2021 –, dando o tom do que seria a apresentação até o final. Os arranjos sofisticados, a escolha equilibrada e reveladora de duas carreiras muito bem-sucedidas há décadas, a sinergia deles com o percussionista Marcelo Costa, tudo esteve envolvido por uma atmosfera de delicadeza e intimidade.
No ano passado, Cantuária e Harris se apresentaram em Nova York, Boston, Paris e Praga. Agora, após outros shows no Brasil, mostraram ao público carioca no último sábado (11/6) um repertório que misturou suas criações mais conhecidas e outras feitas a quatro mãos. Foi um passeio por ritmos e intensidades diferentes, com ótimo apuro instrumental.
Vinícius tocou seus maiores sucessos, em releituras mais próximas da bossa e do jazz. Em “Rio Negro” (uma de suas parcerias com Caetano Veloso), alternou toques mais percussivos no violão e o uso de harmônicos. Fez a plateia cantar baixinho, em coro, “Cheio de Amor” (do disco Sutis Diferenças, 1984), “Coisa Linda” e “Lua e Estrela” (estas do disco Vinícius Cantuária, de 1982). E deu forma de balada, com acento de folk rock, a duas outras parcerias suas com outros gênios da MPB: “Ludo Real”, composta com Chico Buarque, e “Clichê do Clichê”, com Gilberto Gil.
Com mais de uma dezena de discos gravados e tendo emplacado músicas nas vozes de artistas como Melody Gardot e Madeleine Peyroux, o nova-iorquino Jesse Harris fez caminho semelhante ao de Cantuária no show e revisitou a própria trajetória, cantando “Borne Away”, do álbum homônimo (2013), “You and Me”, do disco Feel (2007), “I’ve Got to See You Again” (Crooked Lines, lançado por Jesse & the Ferdinandos, em 2001) e a ganhadora de três grammys “Don’t Know Why” – estas duas últimas muito conhecidas na interpretação de Norah Jones.
Mas foi na interação de Cantuária, Harris e Marcelo Costa que se viu o melhor do espetáculo. Quando Jesse cantou “Broken Umbrellas” e “You The Queen”, os contracantos do violão de Cantuária deram o colorido que as músicas mais singelas merecem, no embalo de uma percussão cuidadosa, inventiva e variada. O mesmo se deu no belíssimo instrumental de “Little Star”. Já em “Waiting”, a harmonia dos vocais fez lembrar de outro encontro de artistas de partes diferentes do globo – quando Paulinho Moska e Kevin Johansen cantam juntos “Waiting for the Sun to Shine” – não por qualquer semelhança entre letras e melodias, ou pelos títulos, mas pela combinação irresistível de timbres, pela troca e pelo entendimento dos intérpretes que falam “a mesma língua” na música.
Por falar em língua, é especialmente feliz a ideia de Jesse cantar “Ó, Maria”, gravada por Gilberto Gil no disco Cidade de Salvador, Volume 1, de 1973. Poderia soar irônico um norte-americano gravar e depois interpretar ao vivo, com todo sotaque, os versos “Ó, Maria, faz tempo que você sabe que eu também sou da Bahia”, com samba marcado nos caxixis de Marcelo Costa. Porém, tudo no show remete ao caráter universal, das misturas que não fazem os gêneros ou temas das canções parecerem deslocados para Vinícius ou para Jesse. É que Vinícius também é de Nova York, e Jesse, da Bahia.
O público ainda foi brindado com uma versão adorável da pérola de Alcyvando da Luz e Carlos Coquejo, eternizada por João Gilberto, “É Preciso Perdoar”, para terminar cantando e marcando nas palmas a clássica “Só Você”. Eis a Surpresa desse encontro tão inspirado entre Vinícius Cantuária e Jesse Harris. Ele vai do universal ao mais particular.
Ricardo Benevides é escritor e professor da Faculdade de Comunicação Social da UERJ e da FACHA. Doutor em Literatura Comparada (UERJ), também trabalhou como editor na Ediouro e na Editora Paz e Terra.