Historiadores da UFF explicam o chifrudo trumpista do Capitólio

 

 

Minha área de estudo na História é o século 20, especialmente os aspectos culturais e sociais. Há várias outras áreas e recortes temporais possíveis, o que faz a disciplina ser tão fascinante. Por exemplo, temos o estudo da Idade Média, pouco ou nada conhecido pelo grande público, uma vez que as escolas quase não mencionam o período que vai do fim do Império Romano do Ocidente – 476 d.C – até o fim do Império Romano do Oriente, com a tomada de Constantinopla pelos turcos-otomanos em 1453 d.C.  São quase mil anos de muita informação e conhecimento que passam quase sem serem notados, o que acarreta uma série de interpretações superficiais ou mal feitas sobre fatos e eventos.

 

Por conta da aparição da grotesca figura do manifestante trumpista, ostentando indumentária que remete a povos nativo-americanos que, por sua vez, mencionam elementos que remontam aos vikings, meus colegas de História Medieval resolveram publicar um pequeno manifesto em que explicam a série de confusões na interpretação das tatuagens e roupa do sujeito. Há muito mais para ver e perceber naquela imagem que correu o mundo.

 

Abaixo reproduzo a íntegra do texto, que está publicado no site do Translatio Studii, o Grupo de Pesquisa Dimensões do Medievo, da Faculdade de História da UFF. Houve momentos da minha graduação em que cheguei a cogitar seriamente o abraço ao estudo do período, mas deixei de lado por conta da interseção entre música popular e cultura.  Mas ficou o carinho imenso com colegas e professores especializados no assunto.  Leiam o texto e visitem o site aqui.

 

 

“Nós, do Translatio Studii, como pesquisadores brasileiros que se dedicam ao estudo da Idade Média, observamos com atenção os atos perpetrados no dia 06/01/2021 na capital dos EUA. Dentre as muitas imagens amplamente divulgadas sobre a invasão do Capitólio pelos apoiadores de Trump, uma chamava especial atenção. Tratava-se de um homem que usava acessórios com chifres e peles, fazendo referência a uma suposta cultura nativo-americana, e que ostentava tatuagens com a temática viking, como o famoso martelo de Thor. Apesar da projeção, devido à dimensão do ato político, não é a primeira vez que esse tipo de referência ocorre. A apropriação de elementos de sociedades medievais tem sido frequente entre indivíduos da extrema direita e é necessário olhar para o fenômeno como algo que vai além da exibição de comportamentos excêntricos.

 

Por trás dessa atitude está uma visão equivocada e mal intencionada da História Medieval – especialmente nórdica, nesse caso – que é falsamente associada a um passado que se supõe branco e patriarcal. Projeta-se nesses povos do passado um ideal de “Idade de Ouro” da masculinidade e da pureza racial. No entanto, a História desafia com novos dados essas idealizações. Inúmeras pesquisas no campo têm revisto diversos pressupostos e questionado a imagem estereotipada de uma sociedade viking exclusivamente branca, loira, de olhos claros e predominantemente masculina. Dentre tais pesquisas – inclusive encabeçadas por pesquisadores/as brasileiros/as – se destacam aquelas que se enquadram nos estudos de gênero, em que a mulher é percebida como atuante para além da esfera doméstica, interferindo nas questões sociais, políticas e econômicas. Ressalta-se também que a visão dos povos de origem escandinava, conhecidos como Vikings, enquanto representantes de uma pureza racial branca europeia, assim como defendem os supremacistas de extrema-direita, é fruto de uma deliberada distorção do passado e que não encontra respaldo nas evidências mais recentemente encontradas. Tratava-se, na realidade, de uma sociedade muito mais transcultural do que se imaginava anteriormente, marcada por intensos intercâmbios econômicos, sociais e religiosos. Infelizmente, essa visão tem permanecido limitada aos rincões da academia.

 

O que se observa na realidade é a apropriação do mito da masculinidade e branquitude viking como estratégia de reafirmação de discursos misóginos, xenofóbicos e de supremacia branca, que clamam a existência de um passado nos moldes do futuro que desejam criar. O perigo se manifesta justamente no fato de que esses elementos são associados a uma miríade de outros signos que fazem parte da comunicação simbólica por meio do qual esses grupos moldam suas identidades. Longe de se preocuparem com a precisão histórica, o que desejam é forjar uma narrativa, distorcendo a realidade em busca de legitimar seus projetos políticos.

 

A existência de visões díspares entre as pesquisas acadêmicas e o público geral demonstra a importância crucial de promover divulgação científica. Faz-se necessário que ocupemos com cada vez mais afinco os espaços até então limitados aos ideais pré-concebidos do senso comum. Precisamos – como professores, pesquisadores e alunos do campo – estar vigilantes contra essas apropriações equivocadas de elementos da História promovidas por representantes de grupos fascistas e contra as deformações de nossas próprias pesquisas para que sirvam aos seus programas de ação. E, em todas as circunstâncias, posicionar-nos contra as incongruências desses discursos. Mesmo que seja impossível anular as ações de quem manipula a história para legitimar projetos de cunho essencialmente excludente, nossa atuação no campo democrático, o comprometimento com a produção de uma História reflexiva e com uma educação emancipadora pressupõe a denúncia contundente dessas ações.

 

Por fim, resta dizer que esse evento trágico contraria as tacanhas concepções por vezes propaladas de que nós, brasileiros, não deveríamos nos dedicar ao estudo e sobretudo ao ensino da História Medieval e Antiga nas universidades e escolas. Infelizmente, essas apropriações de extrema direita do Medievo e da Antiguidade são um fenômeno global que já fincou trágicas raízes no Brasil. Cabe à reflexão histórica nas escolas e nas redes o bom combate contra os avanços do fascismo! “

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

2 thoughts on “Historiadores da UFF explicam o chifrudo trumpista do Capitólio

  • 8 de janeiro de 2021 em 23:02
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    Bem observado, meu caro.

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  • 8 de janeiro de 2021 em 22:17
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    Um outro detalhe que ao meu ver passou desapercebido, Professor: não consegui identificar um único afro descendente nessa “manifestação”. Esse chifrudo representa bem uma parcela significativa dos apoiadores do presidente laranja.

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