Soundgarden: Os Beatles do grunge

 

 

 

Demorou. A Soundgarden teve de esperar 10 anos e quatro álbuns para ter um amplo reconhecimento. Das bandas de Seattle, ela acumulava várias vanguardas: participação na Deep Six, coletânea de 1986 apontada como prenúncio do grunge; primeira a lançar um EP pela antológica Sub Pop em 1987; primeira a assinar com uma major, a A&M, em 1988.

 

Badmotorfinger (1991), o terceiro álbum, puxado por “Outshined”, já conquistara um público maior. No entanto, o conjunto mostrava um potencial bem menos pop quando comparado ao repertório de Ten e Nevermind, deixando a Soundgarden à sombra do sucesso de Pearl Jam e Nirvana.

 

Chris Cornell ganhou mais evidência em 1992, quando a projeção de algumas músicas do álbum gravado no ano anterior pelo projeto Temple of the Dog destacou sua voz. O projeto era uma espécie de fusão entre Soundgarden (que contribuía também com Matt Cameron) e Pearl Jam.

 

O quarto álbum, lançado em março de 1994, foi o resultado de muito trabalho. O quarteto formado por Cornell, Cameron, Kim Thayil e Ben Shepherd fez bem poucos shows em 1993. Neles, estiveram entre as bandas de abertura para algumas apresentações de Neil Young (o “padrinho do grunge”). No restante do tempo, compuseram as faixas de Superunknown.

 

Superunknown debutou na dianteira da Billboard e foi indicado para o Grammy de Melhor Álbum Rock. Antes do álbum chegar às lojas, a banda já estava na estrada, começando a turnê pelo Japão, Austrália e Nova Zelândia, onde nunca estivera antes.

 

Tornou-se o grande destaque do grunge em 1994. Conseguiu isso convivendo com a morte de Kurt Cobain (que ocorreu cerca de um mês depois do lançamento do álbum) e com a aparição de uma duvidosa segunda leva de bandas, como Bush, Candlebox, Collective Soul e Silverchair. Enquanto se discutia o fim e o futuro do grunge, Superunknown mostrou-se muito maior do que qualquer palavra poderia conter.

 

 

Peso e psicodelia

Superunknown foi gravado em Seattle, no Bad Animals Studios, renovado com a compra de uma mesa de primeira linha. O quarteto lá chegou super ensaiado, após passar pelo estúdio da Pearl Jam. As gravações ocorreram entre julho e setembro de 1993. Um conjunto de duas ou três músicas era finalizado antes que seguissem para outro, cada músico registrando individualmente suas participações.

 

A produção foi dividida entre a banda e Michael Beinhorn. A mixagem coube a Brendan O’Brien, outra conexão com a Pearl Jam. Beinhorn havia trabalhado com os Chili Peppers, mas não trazia consigo uma assinatura especial. Foi meticuloso e perfeccionista, o que algumas vezes incomodou os músicos. No álbum seguinte, autoproduzido, o também excelente Down on the Upside (1996), parece ter feito falta essa contra-figura de coesão, pois na sequência o quarteto sucumbiria às tensões internas.

 

Em Superunknown, todos colaboraram. Cornell desponta como o principal compositor das letras (em apenas duas seu nome não aparece), mas ele divide a parte musical com Thayil em duas faixas. Thayil, por sua vez, assina com Cameron uma outra faixa. Cameron e Shepherd são os responsáveis, cada um deles, por mais duas músicas. Houve um trabalho produtivo entre o estúdio e as casas dos músicos, para onde levavam as gravações iniciais.

 

Vale lembrar que a Soundgarden era uma banda de multi-instrumentistas. Cornell, além de cantar, tocava guitarra e bateria – aliás, ele era o baterista na formação inicial. Cameron e Shepherd, os titulares de baquetas e baixo, respectivamente, tocavam guitarra – e tinham um projeto paralelo, Hater, que chegou a lançar um álbum em 1993.

 

Seria simplista demais afirmar que Superunknown é “um álbum grunge”. Nem a conexão da banda com a vertente mais metal da cena de Seattle seria suficiente para explicar seu repertório. Mas podemos começar por aí, desde que seja para ir muito além a fim de dar conta de suas 15 faixas, que com seus mais de 70 minutos não deixaram sobrar quase nenhum espaço no CD.

 

Parece que certa vez, instigado a definir o grunge, Kurt Cobain disse que se tratava de um metal desacelerado. No quarto álbum da Soundgarden, essa descrição aplica-se a pelo menos três faixas: “Mailman”, “Limo Wreck” e, especialmente, “4th of July”. Invocações a Black Sabbath podem ser pressentidas aqui e ali.

 

“The Day I Tried to Live” abre na mesma cadência arrastada, mas acelera no seu refrão. Nesse momento, a música literalmente abre para vislumbrarmos outros elementos que participam da sonoridade do álbum, ao mesmo tempo em que recorre a acordes descendentes que reafirmam a conexão com aquele metal desacelerado e ao stoner rock.

 

Há um peso na música da Soundgarden que não tem a ver apenas com o metal. Se muitos acordes de Thayil remetem ao estilo, a bateria de Cameron, junto ao baixo de Shepherd, segue outras linhas. O vocal de Cornell quando gritado nos faz lembrar de Robert Plant (aliás, em vídeos antigos, podemos ver o tamanho dessa influência também na postura de palco), mas constrói melodias igualmente com muita desenvoltura.

 

“My Wave” é um exemplo de música com peso, graças ao riffs de guitarra e à levada de bateria, que oscila entre tempos mais e menos comuns. “Kickstand” também é pesada, mas em registro que acena muito mais para o punk.

 

Em minha opinião, a mais pesada das faixas desse álbum é a sua última, “Like a Suicide”. E esse peso fica nítido exatamente na metade de seus sete minutos, quando a bateria de Cameron, até então discreta, passa a dialogar com os riffs de guitarra. O ar fica irrespirável de tão denso.

 

“Spoonman” retoma a construção adotada em “My Wave”: a percussão grave alterna com o refrão mais alto. Em ambas, Cameron mostra uma técnica ímpar, com uma posição que não poderia ser mantida quando assumiu, em 1998, as baquetas da Pearl Jam. Ele soa tão melhor com a Soundgarden!

 

Em seu refrão, “Spoonman” mostra outro elemento importante da sonoridade de Superunknown: o groove. Ele ganha mais destaque em “Fresh Tendrils” e, sobretudo, na faixa de abertura, “Let Me Drown”. Nela, nossa cabeça tonteia com o riff da guitarra, que, como em outras músicas, se serve de afinações não usuais.

 

Sentir que nossa cabeça já não habita o alto do pescoço é algo que acontece várias vezes quando escutamos esse álbum. Especialmente por conta de seus elementos psicodélicos, outro ingrediente fundamental da sonoridade de Superunknown.

 

A psicodelia vem misturada ao blues em “Fell on Black Days” e ganha cores fortes em “Head Down”, com sua percussão complexa. Os timbres orientais reaparecem, com maior presença, na estranha “Half”, faixa mais para o acústico, enriquecida por violoncelo e viola, cantada por Shepherd em voz cheia de efeitos.

 

Também na conta da psicodelia podemos colocar “Black Hole Sun”, faixa de maior sucesso do álbum, o terceiro de seus cinco singles. Alternando calma e fúria, a música deve sua popularidade em parte ao premiado vídeo dirigido por Howard Greenhalgh, que acentua seus contornos surreais.

 

Por fim, temos a faixa título do álbum. “Superunknown” tem um riff que não é especialmente pesado, em contraste com a voz poderosa de Cornell. Poderia estar em uma música dos Beatles, assim como os acordes de guitarra na altura do segundo minuto poderiam ter sido criados por George Harrison. “She Likes Surprises”, faixa incluída em algumas edições do álbum, traz também a marca dos Beatles em seus anos finais.

 

Sobre as letras das músicas de Superunknown, é comum encontrarmos comentários que as relacionam com drogas, suicídio e depressão, como se fossem uma espécie de anúncio do que ocorreria com Cornell muitos anos depois. O cantor tirou sua própria vida em 2017 e a família alegou que ele agiu sob a influência de remédios prescritos por seu médico.

 

Prefiro chamar a atenção para outros pontos. “Fell on Black Days” é indiscutivelmente um relato de uma experiência depressiva. Mas o próprio Cornell comentou que “The Day I Tried to Live”, que alguns interpretam na mesma linha, é um esforço na outra direção, assim como parece ser “Fresh Tendrils”.

 

O tema do suicídio aparece literalmente na faixa final do álbum. Contudo, “Like a Suicide” é inspirada pela história de um pássaro que foi sacrificado por Cornell depois de ter se machucado gravemente ao se chocar na vidraça da sua casa. A letra é mais uma contribuição para o patrimônio da relação visceral entre amor e morte.

 

“Superunknown” celebra o desconhecido que existe fora das alternativas mais óbvias. Os versos de “Black Hole Sun” vêm de um jogo de palavras destinadas a pintar quadros surreais inspirados em uma simples notícia de rádio.

 

Há letras de autoafirmação, como “My Wave”, que empresta dos surfistas o aviso: faça o que quiser, mas fora da minha onda! Em “Let me Drown”, essa autoafirmação se torna agressiva: “me afogue em você”.

 

Duas letras aceitam leituras menos pessoais. “Mailman” pode ser sobre a vingança em relações assimétricas e “Limo Wreck” trata da vulnerabilidade dos poderosos. Algo disso aparece ainda no vídeo de “Black Hole Sun”.

 

Já em “Kickstand”, Cornell narra o barato que é pedalar uma bicicleta. “Spoonman” é a mais local das letras do álbum, homenageando Artis (ele participou das gravações), que fazia impressionantes performances de rua em Seattle com sua coleção de colheres. A música nasceu durante as filmagens de Singles, o filme de Cameron Crowe que contribuiu para o hype em torno das bandas da cidade.

 

Como se percebe, a paleta de cores é menos sombria do que a sugerida pela capa do álbum, que se utiliza de uma imagem deformada da banda. Se as vozes e imagens em “4th of July”, como confessou Cornell, têm a ver com uma viagem de ácido, devemos lembrar de outras viagens que não terminaram em morte. Foram, na verdade, uma explosão de criatividade.

 

 

“O Álbum Branco heavy metal”

A frase é atribuída a Chris Cornell e, sim, o Álbum Branco em questão é o assim conhecido LP duplo dos Beatles lançado em 1968. Dar um pouco de atenção à obra do quarteto britânico é um caminho inusitado, mas, espero, efetivo, para revelar pontos interessantes sobre Superunknown.

 

O pouco que vou comentar sobre o Álbum Branco passa pela Índia. Afinal, consta que 18 de suas 30 faixas foram compostas originalmente quando os rapazes de Liverpool estavam na terra de Gandhi. A história de como foram parar lá e o que aconteceu é o tema do documentário The Beatles and India (2021).

 

Entre fevereiro e abril de 1968, John, Paul, George e Ringo passaram uma temporada no ashram de Maharishi, um guru que divulgava, em turnês internacionais, a Meditação Transcendental. Nesse circuito, os músicos conheceram Maharishi na Europa, se encantaram por ele e aceitaram o convite para visitá-lo na Índia.

 

O filme narra a estadia dos Beatles nas imediações de Rishikesh, às margens do Ganges. Além de suas esposas e companheiras, muitos outros britânicos e estadunidenses faziam parte do grupo, incluindo a atriz Mia Farrow e Mike Love dos Beach Boys. Ringo e Paul ficaram menos tempo do que John e George. Alucinógenos, assédio da imprensa, desconfianças sobre o guru e mosquitos tumultuaram as sessões de meditação, o que não impediu, como vimos, que fosse um período extremamente criativo para a banda.

 

Dos quatro, George Harrison foi aquele que levou mais a sério o interesse pela Índia. Desde Rubber Soul, ele começara a introduzir a cítara em músicas dos Beatles. Isso o motivou a buscar Ravi Shankar, com quem manteria uma duradoura relação. Antes do encontro com Maharishi, Harrison já havia feito uma viagem para trabalhar na trilha sonora de Wonderwall, filme de 1968, com várias faixas fortemente influenciadas pela música indiana.

 

Curiosamente, no Álbum Branco, as influências sonoras indianas não são muito evidentes – elas estão mais explícitas em algumas letras. É um daqueles casos que nos leva a pensar sobre o caminho tortuoso das inspirações. O contato com a Índia se expressa não necessariamente em impactos diretos, mas na produção de uma atmosfera que permitiu que a banda aprofundasse as explorações que resultaram em Sgt. Pepper’s.

 

A relação entre Superunknown e o Álbum Branco é reconhecida pela própria Soundgarden. A importância desse álbum já havia rendido uma versão de “Everybody’s Got Something to Hide”, apresentada em uma Peel Session de 1989. Nas músicas mais beatlemarcadas de Superunknown, podemos escutar algo de “Birthday”. Sonoridades orientais aparecem, como já foi assinalado, em “Head Down” e “Half”.

 

No entanto, a conexão ganha em profundidade – mesmo perdendo em precisão – se concordarmos que Superunknown é tão variado e complexo quanto o Álbum Branco, tendo na psicodelia um traço em comum. Essa perspectiva confere mais cores à obra da Soundgarden. Sugere, no mínimo, que produziram um álbum que sobreviveu muito bem ao grunge.

 

 

Nota1: não deixe de conferir o outro comentário que Célula Pop já havia publicado sobre Superunknown: https://celulapop.com.br/26-anos-depois-o-que-superunknown-tem-a-dizer/

 

 

Nota 2: em 2014, quatro anos depois que a banda voltou a se reunir, uma nova edição de Superunknown foi lançada com suas faixas remasterizadas, além dos “lados B” dos singles e de gravações de ensaios e demos. As sessões no Bad Animals Studios renderam ainda os primeiros takes de três músicas que entrariam no quinto álbum.

 

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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