Gonzaguinha nunca foi gauche na vida

 

 

Um dos poucos rituais que tenho na vida é de toda sexta de manhã ouvir o roNca roNca, que vai ao ar toda quinta. Mr. Mauricio Valladares, Nandão, a conversa mole, o caramelo, o hino de algum clube inglês, um dub, e quando a gente acha que não vai sair nenhum coelho daquela cartola, pimba! Se liga mané! É o Ronca Ronca! E nestas a gente descobre o que nunca ouviu falar, o que nunca quis ouvir e, pior, aquilo que você sempre achou que sabia, mas não sabia lhufas!

 

E na quinta da semana passada foi assim. Na largada começou com uma música e eu atento pensando, que parada sinistra é esta??? Por alguns segundos achei que fosse skylab, Itamar Assumpção, mas não era possível, até que a ficha caiu. Explico: Não tem pra ninguém. Se algum dia os listeiros de plantão resolverem fazer uma lista das músicas mais selvagens da história da música brasileira, (alô alô Carlos Eduardo Lima) a campeã absoluta será esta, sem dúvida alguma. “Página 13”, de Luis Gonzaga Júnior. É um tiro nos cornos, nas fuças de qualquer pessoa com um mínimo de simancol.

 

Eis a letra:

Até que ele era um rapaz muito bem educado
Até que ele tinha um bom coração
Até que ele era um rapaz muito bem comportado
Até que ele era um poço de boa intenção

 

Não creio que ele fosse complexado
Meio calado, talvez esquisito, mas batalhador
Eu creio que ele era muito inteligente
Eficiente, honesto, honrado e trabalhador

 

Por mais de dez anos foi meu excelente vizinho
Subia comigo às vezes no elevador
Por certo sabia direito do seu cantinho
Do escuro, tranquilo, com jeito de sonhador

 

Até que hoje à noite pegando e relendo o jornal
A foto no canto da esquerda me despertou
Matou a mulher e as crianças a golpes de pau
Sem um bilhete, sem explicações, se suicidou

 

Se bem que a patroa falava “esse cara não presta”
“Tem cara de ser mau marido, de não ter valor”
Se bem que a patroa falava “esse cara não presta”
“Tem cara de anjo, mas nunca que ele me enganou”

 

Até que ele era um rapaz muito bem comportado
Mas, não, eu nem sei o seu nome, ele nunca falou
Um preto sereno com jeito de sonhador
Mas, não, eu nem sei o seu nome, ele nunca falou

 

 

O arranjo do J.T.Meirelles é espetacular e se alguém souber quem são os músicos que quebram tudo na bateria, baixo, guitarra, piano, violão e sax, agradeço. E eu me pergunto: Como e porque eu jamais tinha escutado esta música?

 

Lá pelo meio dos anos 1970 meu amigo Leonardo Winter, hoje um exímio clarinetista da Orquestra Sinfônica de Porto Alege, me mandou um postal de Brasília dizendo: Ouça “Comportamento Geral”! Gonzaguinha pra mim era só um cara com cara de poucos amigos que de vez em quando aparecia na TV. E claro, filho do Gonzagão, que eu, filho de um gaiteiro, sabia muito bem quem era. “Comportamento Geral” era uma porrada, parecida com os ranchos da goiabada e os mestres salas dos mares do João e do Aldir, mas o Aldir tinha uma ironia, podescreramizadinha tijucana da rua dos artistas, uma alegoria classe C de peixinhos tropicais e moças com bandeides e perfume da Coty.

 

Gonzaguinha não tinha perfumaria. Era soco no olho, direto na raiva. Acho que só a Fátima Guedes conseguiu ser assim também. Em 1977 eu descobri que aquele cara com cara de poucos amigos era o autor dos maiores hits rebolantes do disco das Frenéticas, músicas pra quem já não aguentava mais a milicada e na mesma velocidade que o governo militar ia se esvaindo pelo ralo, as músicas de Gonzaguinha iam ficando mais solares e ele fez discos que venderam para caramba, tocaram para caramba, cheios de sambas antológicos e boleros dores de amores disputados por Gal, Bethânia e Elis, só pra ficar no topo do ranking da época.

 

Quando o governo militar foi pras caralhas, ele lançou O “Lindo Lago do Amor” e ainda arranjou tempo pra fazer as pazes com seu velho pai e percorrer o país junto com ele. Vi o show da dupla no Gigantinho e esta é uma das poucas vantagens de se ter mais de 50 anos hoje em dia. No meio dos anos 1970 o Gonzaguinha era tachado de amargo e no início dos anos 1980, a mesma turma neurastênica reclamava que ele tinha ficado “comercial”. E os rebeldes do momento, eram alguns jovens que estavam começando a mostrar a cara na abertura: a rapaziada do Brock do Ira! ,dos Titãs. E do Lobão, do Ultraje, do Camisa de Vênus…

 

Pois bem, quis o destino, este desgraçado, fazer com que quase cinquenta anos depois, a gente esteja vivendo este pesadelo, sendo governado por um bostalhão paumolento lambe botas da milicada. E pior, um bostalhão apoiado por uma parte da turminha do roquenrola, que resolveu enfiar a rebeldia no forevis e ficar de truta na vida, como nossos pais, ou como nossos tios e porque não, como os vovôs deles, que provavelmente eram lacerdistas, udenistas ou galinhas verdes mesmo.

 

Gonzaguinha segue na área. Ao contrário dos arrombados de plantão, ele nunca foi gauche na vida. E se estivesse por aqui, certamente estaria na praça da Liberdade em BH, fazendo o L, cantando e pedindo pra massa não deixar este país continuar sendo governado por cretinos, clamando por #Lula Presidente.

 

 

 

Fabiano Maciel

Fabiano Maciel é cineasta. Dirige programas de TV e documentários  como  "A vida é um sopro", sobre Oscar Niemeyer e está lançando "Sambalanço, A Bossa que Dança". Mas o que ele queria mesmo era tocar baixo ou maracas em uma banda cubana.

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