“Argentina, 1985” é imperdível
Está em cartaz no Prime Video o sensacional longa “Argentina, 1985”, estrelado e produzido por Ricardo Darín, contando os bastidores do julgamento dos militares argentinos pelo governo de Raul Alfonsín, em 1984/85. Darín interpreta o promotor Julio Strassera, responsável pela investigação, levantamento de provas e acusação dos integrantes da Junta Militar argentina, que governara o país nos dez anos anteriores e que, entre outras coisas, cometeu um número incrível de sequestros, torturas, assassinatos e arremessou o país na guerra contra a Inglaterra pela posse das Ilhas Falklands/Malvinas, resultando na morte de mais de dez mil soldados argentinos e um número menor de britânicos.
O “Julgamento das Juntas” é originário do decreto 158/83, assinado pelo próprio presidente Alfonsín, que dava a ordem para o início do julgamento dos militares argentinos. Foi o primeiro julgamento civil de uma junta militar da História. As audiências duraram de abril a agosto de 1985, resultando na condenação dos ex-presidentes Jorge Rafael Videla e Emilio Massera à reclusão perpétua; Orlando Ramón Agosti a quatro anos e seis meses de prisão; Roberto Eduardo Viola a 17 anos de prisão; e Armando Lambruschini à pena de oito anos de prisão.
“Argentina, 1985” é mais que um filme de tribunal. Com atuações ótimas de Darín e de Peter Lanzani (que interpreta do promotor adjunto Luiz Moreno Ocampo), o longa mostra as intrigas políticas que habitavam os bastidores do novo governo democrático argentino e de como ainda havia gente que aprovava a ação dos militares, sempre usando termos como “defesa da pátria” e “guerra contra guerrilheiros” para justificar as ações sanguinárias. A direção de fotografia reveste todas as tomadas de uma cor sépia envelhecida e ultrapassada e o roteiro mostra sem rodeios vários relatos de pessoas que foram presas e sequestradas, especialmente o de Adriana Calvo de Laborde, que relatou o parto de sua filha no chão de uma viatura policial, tendo ela ficado pendurada pelo cordão umbilical, sem que os guardas lhe concedessem chance de limpar e cuidar de seu bebê. Mais tarde, ainda nua, Laborde foi obrigada pelos guardas a limpar um pátio para, só depois disso, ter sua filha nos braços.
A direção e o roteiro são de Santiago Mitre e o filme estreou no Festival de Veneza, tendo entrado no Prime no dia 21 de outubro. Ele mostra todas as melhores qualidades de um longa argentino, especialmente o ótimo roteiro e uma direção que reveste as cenas de realidade, além de ótimas atuações do elenco, especialmente de Darín, que parece um metamorfo na pele do contido, porém inconformado “Loco” Strassera.
Sobre o Julgamento das Juntas ainda vale contar a história da presença de Jorge Luiz Borges em uma das audiências. O escritor lá esteve no dia 22 de abril de 1985 e deixou o plenário após uma hora de depoimento de um colaborador do regime militar. Borges escreveu uma crônica para a Agência EFE, que foi reproduzida pelos jornais argentinos La Nación e Clarín, na qual dizia, entre outras coisas, que havia testemunhado o mais baixo dos círculos do inferno. “Argentina, 1985” não menciona a passagem de Borges pelo julgamento.
“Argentina, 1985” é um relato histórico de um evento que praticamente fundou e mostrou a força da democracia na América do Sul. Mostra também como uma sociedade precisa se unir para curar suas feridas e não varrer a sujeita para baixo do tapete da conivência. Como diz um amigo de Darín em certa altura do filme: “é preciso evitar que a classe média exerça seu papel histórico de sempre ser conivente com ditaduras militares”.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.
Filmaço, filmaço. E o que eu achei mais genial: nas mãos de qualquer diretor roliudiano o filme poderia se transformar num drama de tribunal; mas não é. Achei sensacional que a cena da divulgação das penas, na qual o promotor simplesmente a comunica ao seu filho, sem música épica de fundo, sem suspense. O momento chave do filme é tratado com uma delicadeza digna dos gênios.
Não sabia do episódio envolvendo Borges, excelente informação