Folia em tempos de coronavírus
Durante a quarentena é preciso muito amor, empatia e positividade. Todo mundo sabe disso, e quem não sabe está em outro planeta. Para o povo dos blocos, extremamente gregário e das ruas, é tempo de achar atividades para o período em casa.
Rodrigo Moreira – músico fundador e mestre de bateria do Chinelo de Dedo e regente dos blocos Desliga e Vem (SP), Volta Amélia (SP) e Carioca da Gema (RJ) – tem promovido ações junto ao seu público e segue tomando todos os cuidados recomendados pelas autoridades.
“Ficamos e estamos conectados virtualmente após o Carnaval. Em todos os blocos que faço parte existem diretorias que organizam esse contato. Tenho feito algumas lives tocando meu banjo, cantando uns sambas que gosto, para levar um pouco de entretenimento e alegria aos meus seguidores nas redes sociais. Algumas aulas online também. Essa semana, por exemplo, gravei uma aula de tamborim para uma Escola Infantil de Português da Inglaterra, a ABCD Escolinha de Português e Centro Cultural Brasileiro, mas de uma forma bem diferente: ao invés de fazer com o tamborim, usei uma colher de pau e um tupperware de plástico, algo mais fácil das pessoas terem em casa”, diz Rodrigo.
Quanto aos alunos dos blocos, o período de quarentena veio justamente quando aqueles que oferecem oficinas dão “férias” das aulas – ou seja, entre os meses de março e abril. “Mas não paramos com as outras atividades. O marketing do Chinelo de Dedo segue produzindo material pras redes sociais, o que engloba dicas e outros conteúdos, e teremos aulas online como introdução e aquecimento para início das oficinas, que voltarão com força máxima logo assim que isso tudo passar!”, aponta o músico.
No caso do Chinelo de Dedo – bloco que toca samba de raiz, com naipes de instrumentos de uma roda de samba: pandeiro, tantã, repique de mão e surdo –, está no ar uma campanha de conscientização. “São posts que pedem para as pessoas manterem a calma, para terem consciência e não saírem comprando tudo, pois existem mais pessoas e elas também precisam se proteger, postagens sobre alimentação etc. Agora somos todos uma grande bateria, precisamos tocar em harmonia e o ritmo básico é a solidariedade”, afirma Rodrigo Moreira. “Estamos também criando conteúdos de entretenimento como dicas de documentários de samba, curiosidades de sambistas, e até um jogo de cartas com os bambas do samba. E vêm mais surpresas por aí!”, complementa.
Rodrigo é de uma comunidade do bairro de Irajá, Zona Norte do Rio de Janeiro, e lá teve seu primeiro contato com a música, aos 12 anos de idade. “A música entrou na minha vida e transformou um menino que tinha tudo pra virar estatística num homem consciente do seu papel na sociedade, e desde então ela é pra mim um caminho que vai das adversidades às possibilidades”, explica. Começou a trabalhar no Carnaval do Rio em 2003, quando os blocos de rua da cidade iniciaram a retomada do espaço público e reinventaram a forma de fazer a festa nas ruas. Chegou ao Carnaval de São Paulo em 2012, com o bloco Quizomba.
Para ele, ser mestre de bateira de tantos blocos, e em duas cidades, é uma alegria e uma responsabilidade grandes: “É quando entra em cena o meu profissionalismo e meu carisma, e é onde coloco a cara a tapa literalmente! Sinto-me um cara privilegiado e realizado musicalmente por fazer parte de blocos com características tão diferentes: o meu, o Chinelo de Dedo, toca samba de raiz, o Desliga e Vem pagode dos anos 1990. O Carioca da Gema é o mais tradicional, toca sambas enredo e marchinhas. Já o Volta Amélia tem um repertório mais variado, que vai do pop ao samba reggae”.
Mariana Garbim – professora, psicóloga e batuqueira – toma os mesmos cuidados que Rodrigo. Com ele, forma um casal mais que querido nas cenas carioca e paulista dos blocos, que vive entre Rio e São Paulo e tem base em Perdizes, na terra da garoa. Aproveitei um papo (online!) com essa dupla para saber de que forma a fase que todos atravessamos tem afetado a cabeça do batuqueiro, e sobre o que se pode fazer em tempos de isolamento social.
Mariana Garbim é psicóloga graduada e mestre pela PUC-Campinas e especialista em Sociopsicodrama pelo Instituto de Psicodrama e Psicoterapia de Grupo de Campinas (IPPGC), dentre outros títulos. Para ela, que toca chocalho e pandeiro no Desliga e Vem e no Carioca da Gema, a arte é mais que importante agora. “A arte conforta, acalma, nos coloca em movimento. Em casa, é uma recomendação pra quem pode, o ideal é assistir filmes, ouvir música, ler um livro… Tudo isso é do campo da arte”, diz.
A psicóloga trabalha com a perspectiva de saúde mental ligada ao poder da criação e da espontaneidade. “Reconheço saúde na possibilidade de modificar certa situação, ou responder adequadamente a novas situações, e a arte possibilita isso, como um ensaio pra vida. Se é no palco que a gente vira super-herói, na música que encontramos as palavras que dão significado ao nosso lamento, na escultura vemos sentimentos concretizados… A arte é o lugar das possibilidades”, explica Mariana.
Perguntada se a tristeza é o tipo de reação mais recorrente em momentos como esse, de quarentena, Mariana foi taxativa: “Nós não precisamos combater a tristeza, ela é uma reação esperada. Assim como o medo. O medo nos protege, faz a gente evitar a exposição ao vírus e nos resguardar em casa, como prevenção. Se não conseguir negociar com esses sentimentos e o desespero começar a te visitar ou se perceber prostrado, indico o contato com um profissional da saúde mental online ou via telefone, para uma acolhida responsável e segura”, aponta.
Como muitos – inclusive este que vos escreve -, Moreira acredita que a fase vai passar rápido. “Lá pra maio, junho, estaremos juntos novamente e literalmente em blocos. A galera vai voltar com um ‘tesão na mão’ pra batucar e com muita vontade de estar em grupo, socializando, já que ficou um bom tempo afastados uns dos outros. Vamos poder tomar aquela gelada, que não está sendo mais a mesma sem a resenha com os amigos”, afirma. “Estamos entendendo que precisamos ficar longe, mas não distantes, e nesse momento entra a música, já que a música aproxima as pessoas. E, com os nossos sentimentos bem cuidados pela arte, vamos conseguir ‘voltar pra vida’ saudável, ou seja, criando!”, complementa Mariana.
Assim como o casal que se conheceu em 2012 no Quizomba em São Paulo e desde então se mantem conectado, a coluna Coringa deseja muito amor, empatia e positividade a todos. Até a próxima!
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Celso Chagas é jornalista, compositor, fundador e vocalista do bloco carioca Desliga da Justiça, onde encarna, ha dez anos, o Coringa. Cria de Madureira, subúrbio carioca, influenciado pelo rock e pela black music, foi desaguar na folia de rua. Fã de poesia concreta e literatura marginal, é autor do EP Coração Vermelho, disponível nas plataformas digitais.