O Império sensorial de Fausto Fawcett

 

 

O tempo está se encarregando de reconhecer o talento de Fausto Fawcett como músico. Não que ele seja exatamente isso, mas geralmente vemos o homem sendo incensado por sua escrita alucinada, sua fixação mulherística-lourística ou algo parecido, deixando sua verve musical restrita apenas ao sucesso nacional de “Kátia Flávia – A Godiva do Irajá”. A faixa, presente em seu disco de estreia – “Faustro Fawcett e os Robôs Efêmeros”, de 1987 – não envelhece e se tornou um marco histórico de um pop brasileiro que teve vida curtíssima, criativo, moderno e com um requinte estético assombroso. Quando surgiu nas paradas, “Kátia Flávia” se constituiu no primeiro rap gravado no país, mesmo à frente do pessoal da periferia paulistana, que chegaria ao disco meses depois, com a sensacional coletânea “Hip Hop – Cultura de Rua”. Fausto, bem diferente de um morador de qualquer periferia urbana, colocou seu nome na história, ainda que “Kátia Flávia” fosse muito mais que um simples rap.

 

O que poucos lembram é da sequência deste primeiro álbum (do qual já falamos aqui). “Império dos Sentidos” veio em 1989, um ano anormalmente fértil para a música pop nacional (a tal ponto que vai virar assunto de outro texto em breve aqui na Célula). Fausto e os Robês Efêmeros (Laufer na direção musical e guitarra, os irmãos Marcos e Marcelo Lobato, no baixo e na bateria, respectivamente, além de outro guitarrista, Pedro Leão) vinham cacifados pelo sucesso do primeiro trabalho e viraram aposta segura dentro do cast da Warner, liderada pelo visionário André Midani. Com uma proposta ousada de novo show para apresentar o que seria “Império dos Sentidos”, Fausto e cia bolaram um pesadelo viciante musical-pornô, que foi encenado em São Paulo, com direção de Fernanda Abreu (que também participara do primeiro disco da trupe). O espetáculo dividiu águas e credenciou o grupo para o lançamento do álbum, com um orçamento de gente grande e carta branca criativa. Para a produção foi recrutado Herbert Vianna, que também tocou ao longo das faixas. Na verdade, a produção de fato ficou a cargo dele e da dupla Laufer-Fawcett.

 

Musicalmente falando, “Império dos Sentidos” é muito mais soturno e criativo do que a já sensacional estreia. A sonoridade funk-rap visionária foi substituída por um mergulho profundo em timbres sintéticos, que se banham no Kraftwerk menos pop e que estavam povoando a mente de bandas inglesas da época, como o Depeche Mode, por exemplo. Aliás, há semelhança de timbres em “Império” com várias passagens do multivencedor “Violator”, disco que o Depeche lançaria quase um ano depois, ou seja, o trio de produtores estava em total sintonia com o que havia de mais moderno e instigante sendo feito no planeta àquela época. As faixas também buscam ampliar o palco narrativo do álbum anterior, que se restringia a uma Copacabana enlouquecida, decadente e futurista, para trazer eventos que acontecem em São Paulo e até no … Canadá. E as letras estão muito mais pesadas, com a já alardeada fixação mulherística levada às últimas consequências, misturando com suicídio, violência e muito sexto, no sentido marginal do termo.

 

A riqueza do disco é impressionante e soa como um OVNI em relação mesmo ao que estava na ponta de lança da música brasileira da época. O início, com a faixa-título, traz samples de diálogos do filme de Nagisa Oshima, cujo título o disco pega emprestado. O clima já é de imersão em sons eletrônicos muito diferentes e climáticos, mostrando que Fausto tinha muito mais em mente do que antes. E a narrativa vai para os píncaros da loucura urbana-genial com “Facada Leite Moça”, que conta a história de um suicídio premeditado por uma fotógrafa loura – claro – que vive no Canadá e vários versos do calibre de “Cientistas vegetais criam plantas carnívoras” e por aí vai. “Androide Nissei” pega a ideia de onde “Gueixa Vadia” – do disco anterior – deixou e amplia o conceito, tornando a história para uma ambientação paulistana-Blade Runner, com participação de Fernanda Abreu citando trechos de canções disco. “Mapas Alemães”, uma das canções menos interessantes do álbum, fecha o que era o seu lado A.

 

A sensacional “Shopping de Voodoos” é a abertura do outro lado, com a sensacional frase “As civilizações antigas voltarão em forma de gíria”, que narra a semelhança das vitrines de um shopping com a exposição de fantoches e bonecos ritualísticos. A emblemática “Santa Clara Poltergeist” vem em seguida, com a saga de um mecânico negão-eletricista que sintoniza uma loura sensitiva e, através disso, ela encarna Santa Clara de Assis. Sim, é isso mesmo. E em seguida, sem dar trégua, vem “Cicciolina”, em homenagem à deputada húngaro-italiana e atriz pornô, que se tornou um ícone mundial no fim dos anos 1980.

 

“Judith Raquel”, que é uma fugitiva do Mossad israelense, com corpo de “Antigo Testamento”, que vira mercadora de armas, vendendo Uzis cor-de-rosa é a próxima personagem, abrindo espaço para a canção de encerramento, “Silvia Pfeiffer”, que tem inspiração na modelo paulistana – que se tornaria atriz logo após o disco – que estampa a capa e a contracapa do álbum. Com ela a narrativa volta para Copacabana, que, segundo a letra, foi transformada num super-gueto capitalista de consumo, no qual foram instalados telões que passam imagens de Silvia Pfeiffer ininterruptamente. Tal exposição leva os habitantes de Copacabana a se cansarem das imagens do invisível e da viabilidade do transcendental. Em tom de missa, com instrumental que vai crescendo, Fausto vai comparando as modelos e manequins a ícones de beleza não-humana, que hipnotizam os moradores de Copacabana e elege Silvia como a mais bela dessas manequins. E isso tudo, gente, há 31 anos. Pensem.

 

“Império dos Sentidos” é desconhecido da maioria das pessoas, que têm em mente a estreia ou o álbum que veio depois, “Básico Instinto”, no qual Fausto conta com outra banda, a Falange Moulin Rouge e que teve muito sucesso por conta do show em que várias modelos e atrizes louras faziam performances no palco. “Império” é o momento de maior criatividade musical da parceria Laufer-Fawcett, sem esquecer da produção de Herbert Vianna, que soube exatamente o que a dupla queria. Um disco que teve tiragem curtíssima em CD, não está disponível nos streamings e que só pode ser achado no mais obscuro tráfico de mp3 ou post no Youtube. É um disco que poderia ser contrabandeado no super-gueto capitalista de Copacabana com Silvia Pfeiffer no telão da esquina entre Miguel Lemos e Nossa Senhora.

 

Descubram. Redescubram.

 

Em tempo: Fausto está na ativa hoje em dia, com o inseparável Laufer, Fabio e Gabriella (do duo Latexxx) e Jodele Larcher.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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