Ana & Eric evocam imagens familiares em novo álbum

 

 

 

 

Ana & Eric – Our House From Here
32′, 9 faixas
(Citadel House)

4 out of 5 stars (4 / 5)

 

 

 

 

“Casa” (ou “lar) é uma construção afetuosa e humana que concede a um espaço físico compartimentado o status de acolhimento e viabilidade de existência de quem o habita. A canção “A House Is Not A Home”, composta por Burt Bacharach a partir de letra de Hal David, em 1964, faz essa reflexão, sob o ponto de vista de um fim de relacionamento e de lembranças que ficaram. Ana & Eric se valem dessa mesma construção, da “casa” enquanto espaço de (sobre)vivência e (co)existência humanas como o assunto principal de seu belo e acolhedor álbum “Our House From Here”. Pessoas gentis, delicadas e inteligentes, Ana e Eric, casados, pais de uma filhinha, oferecem ao ouvinte a chance de adentrar esse espaço de afetos e fofuras para compartilhar de sua vida e sua obra. No caso deles, a “casa” fica na pequena cidade de Saint John, na Costa Atlântica canadense. Para isso, eles se valem de nove canções leves como a pluma que voa pelo ar para falar de mudanças, conquistas, idas e vindas. E tudo parece funcionar por aqui.

 

 

De acordo com Ana Luísa Ramos, parceira de Eric Taylor Escudero, o disco “fala sobre o processo de encontrar um novo lar em um novo país, enquanto olhamos adiante e perseguimos nossos sonhos, mas também olhamos para trás em busca de nossas raízes”. O álbum foi composto e gravado entre 2021 e 2022 e o principal visgo musical que a sonoridade da dupla contém é a influência da música brasileira. Com a base folk ou folk rock enraizada, os dois inserem pitadas de bossa nova aqui e ali, bem como de uma brasilidade elegante e urbana, que também soa, digamos, exótica a ouvidos estrangeiros. Um bom exemplo disso é a canção “Dias Que Não Têm Mais Fim”, belíssima e saudosa por natureza, ela tem um andamento que deriva de uma … marchinha de carnaval. Por trás dessa singeleza, a dupla discorre sobre uma característica, digamos, sazonal, que o Canadá tem durante o verão, os dias que têm luz do sol das cinco da manhã às nove da noite.

 

 

A produção de “Our House From Here”, feita por Dean Stairs, é um paradoxo: consegue ser discreta e luxuriante ao mesmo tempo. Valoriza os belos vocais (Ana é professora de canto lírico) em contraponto às lindas harmonias de violão, mas, sobretudo, é criativa na exposição de detalhes como o uso de bandolins, violinos, teclados ou mesmo vocalizes que vêm e vão sem que percebamos, como se fosse um passarinho que pousasse na nossa janela. A partir dessa lógica, as nove canções do álbum se mostram pequenos universos, não só de curiosidade sonora, mas de contemplação das palavras e detalhes. Além da dupla, estão presentes músicos canadenses, como Darren Browne (Kubasonics, Youngtree & The Blooms, The Burning Hell); Carole Bestvater (Youngtree & The Blooms, LadyLike, The High and Lonesome); Hunter Madden e Andrew McCarthy, o que confere ao álbum o sabor inequívoco de uma obra de têmpera folk, mas, como já dissemos, com uma brasilidade pouco óbvia presente.

 

De cara o ouvinte já se depara com este toque de brasilidade em “Overture”. As vocalizações são totalmente inseridas na lógica bossanovista e abrem espaço para o que virá. “Manhã de Abril” tem letra em português e reflete sobre perdas, ganhos e saudades, constatando que não há como voltar no tempo, com belos achados poéticos que remontam à sensação de lar, como alguém que espera pela outra pessoa no portão ou que, quando finalmente chega, sente o cheiro de café emanando da cozinha. “Poverty” já é uma criatura mais canadense, com letra em inglês e reflexão sobre desigualdade e injustiça, que parecem ter se tornado triste regra no mundo. Em “I Can See Our House From Here”, single que deu início à divulgação do álbum, a dupla trata sobre quão volátil é a construção da ideia de “lar”, podendo acontecer a qualquer instante, a partir de uma necessidade maior. “Home” tem belos violinos e, segundo Ana, “traz um tom irônico para tratar sobre a vida em grandes centros urbanos, onde se vive em apartamentos cuja vista dá para outros apartamentos. É sobre a sensação de opressão e impossibilidade de mudanças em sociedades cada vez mais desiguais, em que muito se trabalha e pouco se recebe”. Em “Sabiá”, que não é uma versão da canção homônima, feita por Tom Jobim e Chico Buarque, a dupla olha para o Brasil com mais força e atenção para a natureza do país, novamente com arcabouço bossanovista. “We Are The Same” e a ótima “Elizabeth, At Least You Tried” são outros bons exemplos do domínio que a dupla tem em relação ao idioma folk contemporâneo.

 

Usando a ideia de “casa” e “lar” para evocar beleza e amor, a dupla também consegue, a partir delas, criticar a impessoalidade, a correria e a uniformidade da vida nas grandes, enormes cidades. Tudo em “Our House From Here” suscita beleza e harmonia, que a dupla busca compartilhar com os ouvintes. As canções, a intenção e, por fim, o resultado apontam para uma vida possível, desde que deixemos de lado o que não importa. Belo trabalho.

 

 

Ouça primeiro: “Elizabeth At Least You Tried”, “Manhãs de Abril”, “Sabiá”, “Dias Que Não Têm Mais Fim”

 

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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