Dois Tons de Bossa Nova

 

 

Em primeiro lugar, um esclarecimento: não há aceno explícito à Bossa Nova nas obras recentes da cantora brasileira, radicada em Nova York, Alexia Bomtempo, nem na da dupla de Oakland, Califórnia. Mas, uma audição atenta irá mostrar que, sim, há a nítida inspiração nas tonalidades bossanovísticas. Quando me refiro a isso, falo, não só do aspecto musical, mas do espírito. A Bossa pode significar várias coisas, desde uma possibilidade de Brasil que nunca se concretizou, passando por caminhadas à beira-mar em Ipanema ou contemplações tristes da chuva atrás da vidraça da janela. A Bossa Nova se tornou muito mais que um estilo musical, tornou-se um estado de espírito e, a partir disso, alcançou níveis surpreendentes pelas mãos de outros artistas.

 

Alexia Bomtempo é um exemplo de cantora dona de um registro vocal belíssimo que, a princípio, nada ou pouco tem a ver com inspirações bossanovísticas. Mas, basta uma olhada/ouvida em seu ótimo “Doce Carnaval” para dissipar qualquer dúvida. Alexia mora em Nova York, tem ascendência estadunidense e esbanja charme neste álbum que tem um conceito audacioso: reler canções vinculadas ao Carnaval e transformá-las em pequenos pedaços de melancolia contraditória ao vento. O objetivo é plenamente alcançado em vários momentos, mas Alexia acerta no alvo quando pega algumas músicas muito alegres – caso de “Rapunzel”, sucesso na voz de Daniela Mercury – e as remodela, oferecendo novas perspectivas e abordagens. Ou quando verte “Noite dos Mascarados” para o francês, abrindo todo aquele caminho do pop francês clássico sessentista, que tangenciou a Bossa Nova em seu tempo, com um estilo todo próprio.

 

Alexia tem participações bacanas no álbum. Estão presentes Roberta Sá, Fernanda Abreu, Maia Barouh, Otto e até o guitarrista Josh Klingohoffer, que já tocou com os Red Hot Chili Peppers e agora integra a configuração de palco do Pearl Jam. Com Roberta, ela faz uma versão dolente de “Banho de Cheiro”, cheia de climas e possibilidades. Com Fernanda Abreu, temos “Domingo”, um samba-enredo belíssimo da União da Ilha do Governador, de 1977, totalmente envolto em brumas e andamento, sim, totalmente calcado na bossinha ao violão. Otto dá um brilho especial em outro colosso carnavalesco dos anos 1990: “Mal Acostumada”, que foi lançada pelo grupo baiano Araketu.

 

 

Se Alexia leva o ouvinte para passear por paisagens cinzentas e elegantíssimas com molduras de sonho, a dupla americana Brijean já faz o caminho oposto. A sonoridade praticada por Brijean Murphy e por Doug Stuart é uma mistureba na qual cabem pop dos anos 1970, house music, jazz latino dos anos 1960 e, a partir deste rótulo, a Bossa Nova. Porque americano achava que o estilo vindo do Brasil era uma variação praiana do jazz tradicional, algo que não estava totalmente errado, mas pensar assim restringia o espectro da Bossa apenas ao aspecto musical, algo que a gente já entendeu que não cabe aqui.

 

Definido como uma mistura entre Deee Lite e Marcos Valle, o Brijean é uma belezinha. De 2021 para cá, a dupla soltou dois EPs: “Feelings” e “Angelo”, ambos com faixas que parecem gravadas na beira da piscina, cheia de sol e efeitos sonoros que sugerem preguiça solar, drinks coloridos servidos e a câmera de Michelangelo Antonioni em algum lugar da imaginação. Para quem gosta de pensar em possibilidades de futuro que não aconteceram, o som do Brijean é um prato cheio para novas possibilidades de fusões rítmicas e estéticas, ainda que tudo pareça apenas música mais ou menos eletrônica para dançar.

 

 

Em “Angelo”, por exemplo, a dupla percorre nove músicas em 21 minutos, pequenas gotas de sons que vão e vêm. A trinca inicial – “Which Way To The Club?”, “Take a Trip” e “Shy Guy” antecipam a chegada da faixa-título, que se desenvolve em meio a percussão, samples e vocais desencarnados que vão anunciando a entrada de instrumentos aqui e ali. Na verdade, todo o EP é um exercício de um estilo que não existe formalmente. A dupla faz sua abordagem de várias nuances, incluindo, entre elas, a Bossa. Assim como Alexia, o Brijean se apropria de algo inefável, não-estabelecido, mas que está lá.

 

Ouvir “Doce Carnaval” e “Angelo” abrirá sua mente e isso é sempre bom. Os dois são altamente recomendados, vá na fé.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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