Difícil escapar de Lovecraft

 

Com Alan Moore, o mestre do “horror cósmico” H.P Lovecraft encontra sua versão definitiva nas HQs

 

No mundo dos gibis, o escritor Alan Moore é um deus. Membro da santíssima trindade de autores dos anos oitenta, ao lado de Neil Gaiman e Frank Miller, ele é responsável por boa parte do cânone moderno europeu e norte-americano: escreveu V de Vingança (1982), Monstro do Pântano (1984-87), Batman: A Piada Mortal (1988), A Liga Extraordinária (1999), Do Inferno (1999) e, o único gibi incluído na lista dos cem maiores romances do século XX da revista Time, Watchmen (1986). Se você não leu ao menos alguma dessas obras, feche esta página e corra atrás. Agora.

 

Não, espere. A Célula é um baita site. Termine sua leitura dos nossos vibrantes artigos e depois procure os trabalhos do Sr. Moore. Espero por você no próximo parágrafo.

 

Pois bem, creio que não precisamos de muito esforço para admitir que o sujeito é genial. Controverso, irredutivelmente progressista, Moore trabalhou na fundação de muita coisa que, inegável, é fundamental para um bom quadrinho nas últimas décadas, tais como a exploração da psicologia dos personagens e a evolução de suas características muito além das premissas básicas iniciais. Brigado há anos com as grandes editoras, por onde produziu grande parte da sua obra célebre, ele vem criando quadrinhos autorais por um punhado de décadas, misturando conceitos e adaptando outros de autores clássicos.

 

Depois de uma temporada gerenciando um selo próprio, America’s Best Comics na Editora Wildstorm, Moore se dedicou a realizar uma das mais profundas adaptações literárias de sua carreira, convertendo para as páginas de um gibi os contos de H.P. Lovecraft, considerado um dos pais do chamado “horror cósmico”.

 

Nas histórias de Lovecraft os personagens balançam entre a loucura e o desespero total ao descobrirem a existência de entidades antigas e poderosíssimas, não raro malignas, que aguardam o momento de seu retorno à nossa realidade, como nossos regentes. É como se o conceito de sublime, associado aos gigantes da Arte como Michelangelo e Da Vinci fosse distorcido de forma horrível e grotesca. No lugar da contemplação emocionada, temos a repulsa inescapável e o terror infinito.

 

Moore já havia tangenciado aqui e ali conceitos lovecraftianos em sua obra. O mais célebre momento talvez seja a conclusão da série Watchmen, que traz um elemento forjado a partir das criações do escritor norte-americano. Essa passagem foi alterada na adaptação cinematográfica de 2009 dirigida por Zack Snyder, recebendo um tratamento mais “aterrado” e gerando fortes debates entre os fãs da obra original.

 

Em 2003, a editora estadunidense Avatar Press publicou The Courtyard (O Pátio, no Brasil), uma minissérie em duas partes que adaptava um conto homônimo de Moore e trazia ilustrações do artista Jacen Burrows. A história original de Moore havia sida publicada na antologia A Starry Wisdom: A Tribute To H.P. Lovecraft (editada pela Creation Books em 1994). No gibi, a adaptação do texto de Alan Moore ficou a cargo do escritor Anthony Johnston.

 

O Pátio narra a história de Aldo Sax, um agente do FBI que, a partir de uma “teoria da anomalia”, que junta fatos aparente desconexos em uma narrativa concisa, chega à cidade de Red Hook para investigar uma série de três assassinatos sem ligações óbvias. Suas pistas o levam à palavra Aklo, que ele suspeita ser o nome de uma droga alucinógena desconhecida. Na verdade, esse nome, e o homem que finalmente apresenta Aklo ao agente Sax, Johnny Carcosa, vão jogar o policial em uma trilha irreversível de abominações e conhecimentos ocultos.

 

A história lida com conceitos fascinantes sobre o poder da palavra, sobre a maneira como a linguagem funciona como um portal para realidades extraplanares e mundos distantes. Tendo sido criada a partir da obra de Lovecraft, esse aspecto é obviamente materializado pelo grotesco e monstruoso.

 

O gibi tem um trunfo enorme no seu desenhista. Jacen Burrows possui um traço algo estilizado, mas de base realista, de certa forma como é o de Steve Dillon, famoso por histórias do Justiceiro e pela série Preacher. A realidade que Burrows imprime nos quadros, detalhista e de linhas limpas, cria um contraste perturbador entre o oculto e o visível. É muito fácil se perder nos terrores criados por Lovecraft quando os vemos inseridos em um mundo, mesmo em papel e bidimensional, que evoca com tanta propriedade nossa realidade comum.

 

Com o sucesso e a ressonância da história, a Avatar Press e Burrows produziram uma continuação em 2010, Neonomicon. Para essa empreitada, os roteiros originais foram assumidos pelo próprio Alan Moore. Neonomicon é uma minissérie em quatro partes, a primeira obra a ganhar a então recém-inaugurada categoria graphic novel, em 2012, do Bram Stoker Awards.. No Brasil, tanto ela quanto O Pátio foram publicadas em um só volume, Neonomicon, também em 2012.

 

Retornam os traços precisos e aterrorizantes de Burrows e a narrativa centrada na investigação de seitas ocultistas. Acompanhamos dessa vez os agentes federais Lamper e Brears que, disfarçados de marido e mulher, infiltram-se num grupo cultista em Massacusetts, seguindo pistas deixadas pelo caso de Aldo Sax em O Pátio. O que segue são momentos de enorme tensão e violência, inclusive de cunho sexual, um dos traços mais inquietantes nos trabalhos de Moore.

 

O escritor britânico extrapola as marcas deixadas pelo autor estadunidense e cria personagens capazes de levar os mitos e ritos lovecraftianos às últimas consequências. O sexo, assunto evitado por Lovecraft, e o racismo, tristemente defendido por ele em alguns de seus trabalhos e textos mais íntimos, são jogados em primeiro plano em Neonomicon. Aos horrores forjados na Rhode Island dos anos 1930, juntam-se as degradações e abusos morais que ainda persistem na sociedade moderna.

 

O resultado é contraditoriamente fascinante e de embrulhar o estômago. A leitura de Neonomicon se assemelha a uma experiência emocional, e das mais exaustivas. Não é muito difícil sair abalado de suas páginas, principalmente ao se considerar aqueles personagens como pessoas, embora fictícias. É necessária uma verdadeira coragem para encarar os traços de Burrows que descrevem, detalhadamente, uma das cenas mais impactantes de violência sexual a ser colocada em um gibi.

 

E novamente são deixados ganchos na obra que permitem vislumbrar um universo ainda mais vasto de possibilidades sob essa releitura do trabalho de Lovecraft. Com Neonomicon, começamos a perceber que alguns fios se conectam, que a história é ainda maior do que supúnhamos em O Pátio e que coisas ainda mais aterrorizantes estariam por surgir.

 

E os mistérios são finalmente destrinchados e expostos, de uma maneira bem particular, na maxi-série Providence, publicada nos EUA em doze partes entre 2015 e 2017. Para a produção dessa que é a mais sólida adaptação em gibi de uma obra literária de horror, Alan Moore e Jacen Burrows retomam a parceria. A manutenção do traço de Burrows em todo esses volumes garante uma grande coerência narrativa à história, além de servir com perfeição para que os conceitos de distorções temporais, físicas e mentais atinjam o leitor como um soco na cara.

 

Assim como acontece com Neonomicon, a leitura de Providence é imersiva. O personagem principal dessa vez é Robert Black, jornalista e aspirante a escritor, em Nova Iorque, no ano de 1919. Após um baque amoroso, ele decide abandonar seu emprego no jornal New York Herald e seguir viajem pela região da Nova Inglaterra em busca de elementos para o que chama de Grande Romance Americano, onde deseja retratar os excluídos, os outsiders, os que vivem à margem da sociedade industrial. Sentindo-se ele próprio à parte, Black deseja dar vida e voz aos elementos periféricos da modernidade.

 

Cada volume de Providence desfila personagens, locais e acontecimentos das histórias escritas por Lovecraft. Moore mergulha com intensidade na mitologia do escritor, costurando detalhes com extremo cuidado e uma visão surpreendente sobre toda a obra. No final de cada edição da série, assim como acontecia em Watchmen, surgem reproduções de textos importantes dentro da história. Nos números inciais, são panfletos e trechos de livros que Black encontra em suas viagens e depois, e pela maior parte da série, podemos ler o que o personagem escreveu em seu commonplace book, uma espécie de diário e caderno de esboço de ideias.

 

A princípio, as entradas no diário de Black podem parecer repetitivas, pois descrevem os acontecimentos, sem muito calor ou entrega, que já testemunhamos nas páginas do gibi. Mas com atenção é possível percebermos a queda irreversível da mente de um homem em direção à loucura e ao desespero.

 

Os volumes da série ajudam a construir uma verdadeira road trip do terror, conforme Black vai se embrenhando pelos territórios da Nova Inglaterra estadunidense. Várias passagens da história se conectam de forma nem sempre linear e os fãs de Lovecraft vão se sentir em casa ao identificar  as referência às suas criações. Completa, a narrativa fecha um círculo perfeito onde também habitam as histórias de O Pátio e de Neonomicon. Muitas pontas e tramas são amarradas no último número, em uma escala cósmica.

 

Providence é um trabalho de fôlego, um tratado riquíssimo sobre a obra de um ícone do horror. Moore não evita temas e abordagens, mesmo as mais incômodas. É uma leitura absolutamente essencial, principalmente numa época em que o trabalho de Lovecraft tem sido cada vez mais revalorizado e novas edições de seus escritos, inclusive no Brasil, chegam às livrarias. Aliado a uma arte segura e nada tímida na descrição gráfica dos mais distintos horrores, o texto de Moore nessa série, por sua profundidade e planejamento, merece lugar digno ao lado de suas maiores realizações.

 

Providence teve sua publicação recém concluída no Brasil, totalizando três volumes que compilam, cada um, quatro histórias da série original. Ancore firmemente sua sanidade antes de mergulhar em suas páginas.

Fabio Luiz Oliveira

Fabio Luiz Oliveira é historiador e crítico da Arte não praticante. Professor da rede pública do Rio de Janeiro. Escritor sem sucesso, espanta o mofo de seus textos em secandoafonte.wordpress.com

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