Dead Fish – Ponto Cego
Gênero: Punk, Hardcore
Duração: 39 min.
Faixas: 14
Produção: Rafael Ramos
Gravadora: Deck
“Ponto Cego” marca alguns números interessantes: é o oitavo disco dos capixabas do Dead Fish, recupera seu contato com a gravadora Deck após dez anos e marca o 28º ano de carreira da banda. Hoje, um trio, após a saída do baixista Ayland, o grupo tem no vocalista e baixista Rodrigo Lima a sua força criativa em termos líricos. E isso é bastante importante, uma vez que “Ponto Cego” é um furioso, virulento e cascudo disparo de indignação contra o Brasil pós-golpe. Na verdade, as 14 faixas do álbum fazem um levantamento de fatos e detalhes desde 2013 até a eleição do atual presidente. Tudo com uma sinceridade raríssima nos nossos tempos.
Se o forte de “Ponto Cego” fosse apenas as letras, o álbum já seria vencedor, mas a eficiência dos arranjos e o desempenho dos músicos está à altura. Os timbres das guitarras de Ric Mastria são sensacionais e muito bem elaborados. A bateria de Marcos Meloni é rápida, criativa e confere a estrutura e velocidade necessárias para as letras (de Lima com vários parceiros) passarem por cima de tudo, sem deixar sobreviventes e expondo a verdade dos fatos. A produção do experiente Rafael Ramos dá o molho e o acabamento necessários para este disco soar, por exemplo, como o último do Bad Religion, “New Age Of Unreason”. Bill Stevenson, ex-baterista do Black Flag, mixou o disco em seu estúdio The Blasting Room, nos Estados Unidos. Talvez o melhor exemplo da eficiência musical do trio esteja nas dinâmicas de “Sombras da Caverna”, que alude ao “mito da caverna”, de Platão. Pense: quantas letras de bandas brasileiras da atualidade falam disso?
De fato, a carga lírica de “Ponto Cego” é o que chega em primeiro lugar ao ouvinte. São 14 faixas extremamente sintonizadas com a situação do país. Ao longo das canções vamos ouvindo versos preciosos como “o lado certo da História não tem sangue nas mãos” (em “Sangue Nas Mãos”), ou “o predador neoliberal faz a festa, o novo sistema laboral fábrica de escravos, prioriza oligarcas” (em “Doutrina do Choque”). Os vocais de Rodrigo Lima conferem a raiva e a urgência necessárias ao tema, mostrando a indignação e a fúria na medida certas.
A crítica do grupo perpassa os políticos e atinge em cheio a classe média, talvez a grande responsável pela engrenagem opinativa/eleitoral do país. Esta análise classista chega às vezes em pequenas pérolas, como é o caso de “Suv’ (Stupid Utility Vehicle), usando a irritante mania das pessoas de comprar veículos enormes para andar nas ruas das cidades cada vez mais abarrotadas de gente. “Atropele pobres marginais/Na velocidade da luz/Sua ética do tanto faz/Tornando mais leve a cruz”. Em certa altura da canção, uma voz anuncia uma promoção: “Hoje promoção de SUV’s, apenas 300 mil golpes. Você ainda leva de graça um rifle AK-47 e uma babá migrante, toda de branco.”
Forte, necessário, “Ponto Cego” é um dos discos do ano.
Ouça primeiro: “Sombras da Caverna”.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.