Quatro Sugestões Instrumentais
Há alguns anos entrevistei Ed Motta para a Rolling Stone. A certa altura do papo, o cantor e compositor carioca fez uma defesa entusiasmada da música instrumental, atribuindo a ela uma liberdade que a canção com letra e outras camadas de sentido não dispunha. Faz sentido a observação de Ed. A música instrumental é um terreno povoado por inúmeras tendências e correntes de artistas e estilos, todos unidos sob a característica comum de não ter uma letra para ser cantada e, por assim dizer, gozar de uma enorme liberdade interpretativa, subjetiva. Outra entrevista me vem à mente. Arthur Dapieve, jornalista e escritor carioca, fã de música clássica e erudita, me disse há pouco tempo que, se fosse vivo, Mozart seria um trilheiro de cinema. A alusão se dava à personalidade do compositor austríaco, que poderia sugerir um desejo de reconhecimento e exposição de sua obra, o que, convenhamos, faz bastante sentido. O fato é que, se juntarmos as duas declarações, de Ed e Dapieve, teremos uma pista sobre o que este texto quer dizer: música instrumental é legal, interessante e, sim, as trilhas sonoras de filmes para o cinema pode ser uma boa referência para se encontrar um monte de compositores bacanas.
Claro que você já deve conhecer gente como John Williams, que fez vários temas para a telona, de “Caçadores da Arca Perdida” a “Star Wars”, ou, com sorte, também deve conhecer o compositor preferido de Hitchocok, Bernard Hermann, que assinou a trilha de “Psicose”, por exemplo. Ou o maestro italiano Enio Morricone, responsável por “Cinema Paradiso” e “A Missão”. Ou ainda o grego Vangelis, que colocou seu nome embaixo de “Carruagens de Fogo” e “Blade Runner”. O fato é que a missão da Célula Pop é te apresentar música nova. A gente ainda vai fazer uma lista de trilhas cinematográficas mais queridas, mas, por enquanto, queremos te dar quatro sugestões de álbuns instrumentais. Dois deles são trilhas de filmes realizados ano passado, 2021, portanto, ainda novíssimas. Além delas, queremos te mostrar um EP de um grupo americano e o álbum de um compositor italiano de cinema, mas que, neste caso, realizou um disco à parte de alguma trilha sonora. Vamos nessa?
Vamos começar pelas trilhas. A primeira a ser indicada – com louvor – é a de “Spencer”, filme dirigido pelo chileno Pablo Larraín, com Kristen Stewart interpretando belamente a Princesa Diana. Quem assina é o guitarrista do Radiohead, Jonny Greenwood, que tem uma carreira consolidada neste terreno, já tendo assinado, entre outras, as trilhas de “Sangue Negro”, “Phantom Thread”, “Precisamos Falar Sobre Kevin”. O cineasta americano Paul Thomas Anderson é um fã do trabalho de Greenwood. Em “Spencer”, um filme que mostra a tristeza e a sensação de deslocamento vividas por Diana em seu último Natal com a Família Real, Jonny oferece uma trilha em que o incômodo é a mola mestra. Os timbres de cordas e metais vão do clássico ao jazz, pontuando e amplificando a sensação de desconforto que a personagem vivencia na tela, passando-a ao espectador, causando, paradoxalmente, uma impressão de estar diante de algo muito belo, ainda que triste. A solidão de Diana também é transmitida pelos instrumentais lentos e abstratos, num trabalho que tem vida própria possível sem o filme. O fã de Radiohead há de identificar em muitas passagens da trilha, ainda que sejam diferentes da musica do grupo, um clima que perpassa todas as obras do grupo, caracterizadas pela melancolia e pela mesma sensação de inadequação que, convenhamos, muitos de nós também sentimos.
Outra trilha soberba é do longa “Drive My Car”, dirigido por Ryûsuke Hamaguchi, inspirado em um conto de autoria de Haruki Murakami. Dois anos após a morte inesperada de sua esposa, o renomado diretor de teatro Yusuke Kafuku, recebe uma oferta para dirigir uma produção de Tio Vanya em um festival de teatro em Hiroshima. Lá, ele conhece Misaki Watari, uma jovem desiludida, designada pelo festival para servir como sua motorista, função que ela irá desempenhar em seu amado Saab 900 vermelho. À medida que a estreia da produção se aproxima, as tensões aumentam entre o elenco e a equipe, especialmente entre Yusuke e Koshi Takatsuki, um belo astro da TV, que compartilha uma conexão indesejada com a falecida esposa de Yusuke. Forçado a enfrentar algumas verdades dolorosas em seu passado, Yusuke começa – com a ajuda de sua motorista – a enfrentar os mistérios que sua esposa deixou para trás. A trilha é de autoria de Eiko Ishibashi, uma compositora japonesa que tem trabalhos tanto na produção de TV de seu país, como uma banda de rock avant-garde, chamada Kafka’s Ibiki. Ela também colabora frequentemente com o músico americano Jim O’Rourke, que já produziu álbuns de Wilco e Sonic Youth, entre outros. Eiko oferece uma trilha belíssima, completamente assimilável, passando da música ambiente ao easy listening num piscar de olhos. Como o filme pede, suas canções acompanham grandes tomadas de estradas e ruas, cumprindo uma função quase inversa a obras como “Transeurope Express” ou “Autobahn”, ambas do Kraftwerk, só para citar duas canções sobre movimento em vias construídas pelo homem. A música em “Drive My Car” é acessória, mas, sem que o espectador note, ela se torna indissociável das imagens, com uma beleza melancólica que espelha muito bem o tom que o longa exibe.
Saindo das trilhas, mas ainda no cinema, temos Ludovico Einaudi, músico italiano com passagem em vários estilos, do pop/rock ao ambient, chegando a assinar a música de dois longas dirigidos pelos franceses Olivier Nakache e Éric Toledando, “Intocáveis” e “Samba”. Anteriormente, Einaudi assinou a trilha de “This Is England”, de Shane Meaddows, sendo a série coreana de TV “While You Were Sleeping”, de 2017, um trabalho de grande popularidade. A carreira de Ludovico fora das trilhas é muito sólida e ele lançou “Underwater” no início deste ano, um disco composto durante a pandemia, com doze peças curtas ao piano. Movido pela tristeza do isolamento social, pelo silêncio e pela esperança de uma solução que restaurasse a normalidade, Einaudi fez um álbum inevitavelmente triste, mas muito bonito e com a sensação de que, sim, estamos ouvindo algo feito para o cinema, mas não para uma produção convencional, talvez algo que seja pequeno, discreto. Suas passagens ao piano às vezes soam como gotas d’água numa janela que recebe pingos da chuva, esse tipo de sentimento de contemplação e melancolia. “Underwater” é bonito pra chuchu.
A última dica é o grupo novaiorquino SUSS, que está lançando um belíssimo EP, chamado “Night Suite”. A ideia dos sujeitos é simples, porém, quase inédita. Misturar timbres de alt country com música ambiente, usando instrumentos tradicionais – guitarra, baixo, violão – em meio a paisagens criadas em sintetizadores e engenhocas similiares, tudo unido por um conceito: é música feita para sonorizar uma viagem pelas estradas americanas à noite, começando com o céu escuro e chegando com o raiar do dia. As peças – curtas – vão mostrando o itinerário, que começa em “Gallup”, no Novo México e chega a “Needles”, na Califórnia, passando por três cidades no Arizona – Flagstaff, Ashfork e Kingman. Você não precisa conhecer esses lugares, mas a música que o quarteto proporciona em menos de vinte minutos de audição, é bela, pacífica e visual, quase possibilitando o ouvinte de seguir a mesma viagem – verídica? – que o roteiro propõe.
Estas são apenas quatro dicas no meio de um oceano de possibilidades que a música instrumental oferece. Se você anda de saco cheio de uma eventual mesmice da música pop ou tem um indomável desejo de conhecer novidades que podem estar bem mais perto do que você pensa, estes caminhos aqui podem te levar a novos mundos.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.