Crônicas do Busão

Desde os 14 anos, quando fui ‘autorizada’ pela mãe a andar sozinha, circulo de busão pela cidade e pelo estado. E quando digo cidade e estado significa da Zona Norte à Zona Sul, passando pelo Centro (um pouco pela Zona Oeste, especialmente Campo Grande), Niterói e Petrópolis. Pois depois de 35 anos, HD zerado, terei de participar de workshops sobre mobilidade para saber de troncais, baldeações e linhas extintas e encurtadas. Tanto conhecimento acumulado jogado fora por conta do cartel dos ônibus.

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Na linha 410, em direção à Lapa, sábado de carnaval, 14h57:

Motorista assanhado propõe pruma moça vestida com véu e grinalda: “Casa comigo!?” No outro ponto, entra uma foliã com fantasia orelhuda: “Entra, coelhinha! Tô fantasiado de motorista!” Por essa e outras que adoro lotação.

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Quem tem XY no sangue e já pegou ônibus uma vez na vida na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro conhece o fenômeno. O cara que ocupa não um mas dois assentos. Há a teoria de que o ângulo desse espacate se deve à grandeza do órgão genitor urinário masculino, que se assemelha a uma melancia. Coisa que todas sabemos ser verdade. Pois não é que o “hábito” se esprai entre elas? Já fui vítima de uma dessas, digamos, espaçosas. Uma amiga disse que também foi. No caso da amiga, a passageira, na falta de um órgão genitor urinário avantajado, colocou um envelope no assento ao lado. E não o demoveu do lugar apesar dos protestos…Alguém explica que quizila é essa? Complexo de inferioridade?

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Semana passada, ônibus cheio, me peguei repassando o “Manual para Meninas contra Encoxadores: Estratégias de Sobrevivência”, 4.356ª edição, revista e ampliada para a filha.

Nunca pensei que teria que resumir para uma pré-adolescente práticas de defesa (nunca de denúncia ou ataque) passadas de geração a geração de mulheres, em pleno século XXI. Achei a coisa mais cafona e ultrapassada ever. Aí vieram a pesquisa do Ipea e o reclame do Metrô paulista sobre “xavecar a mulherada no metrô lotado”…E me dei conta de que não é a coisa mais cafona e ultrapassada ever. Está atualíssima. Até quando?

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Da série “Coisas que a Gente Aprende se Metendo na Vida dos Outros” ou “A Vida como Ela é na Linha 157”:
Moça com um black power-tudo saca a marmita Técnico de uniforme, 70 anos, do outro lado do banco:

– Moça, não é saudável comer no ônibus. Tem de almoçar na sala de estar, na sala de jantar, na cozinha, até no banheiro, mas faz mal comer no ônibus!

Moça: – Obrigada pelo toque!

Eu: – Melhor no ônibus do que ficar com fome.

Dez minutos depois, surge uma mulher com uma marmita e senta ao lado da moça do black power-tudo, abre o Taper Uér e começa a comer e a conversar animadamente com a vizinha de marmita Acho que tá surgindo uma nova moda gastronômica volante.

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No ônibus cheio, moradora de uns 75 anos do Leblon lembra as mazelas do Rio, no dia do aniversário da cidade: “Em Nova York, pela TV, eles mostravam os assaltos, a violência, as invasões dos favelados”… Engoli em seco…
Mazela é viver numa favela.  Faltou mostrar a mazela da alma dessa senhora do Leblon…

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Meninos, eu vi: suburbano é bicho ardiloso e criativo.
Lembro da viagem que o 335 fazia de manhã bem cedo, que por hábito sempre levava as mesmas pessoas: comerciários e bancários, na maioria, para a Tiradentes (nos anos 80, a Praça ainda era ponto final de uma série de linhas que vinham de Madureira, Ramos, Penha, Cordovil, Vaz Lobo). Era fim de ano e os passageiros enfeitaram a condução com balões e fitas de papel crepom colorido. Acreditem, havia uma festa rolando lá dentro: comes, bebes e sorteio de amigo oculto

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No ponto de ônibus, em frente à favela, um sujeito portava uma camiseta com a frase: “Vida – futebol = tristeza”… é… a vida pode ser simples…

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Tá tendo carioca falando catraca. É roleta, meu povo! Catraca é coisa dos Jardins e do Dólar Jr.

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Tem coisa que só suburbano enfrenta e sobrevive pra contar. Tipo os conceitos da Física Quântica, poder de aceleração e empuxo que a gente vive na carne. Fui numa dessas viagens do 334, que comprovei a teoria da impenetrabilidade (“nome dado à qualidade da matéria pela qual dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo”). Ainda era o tempo em que havia cobrador na parte de trás. E a gente entrava por trás. E eu, novinha, sentei no bancão da traseira.

Foi tão rápido que nem deu tempo de raciocinar, fui pega de surpresa, pensei em nano segundos ter ficado cega. Mas foi mesmo a Física a culpada: depois de uma freada, uma dona que tava entalada na roleta foi arremessada na minha cara. Também fiquei sem respirar, meus óculos ficaram tortos, mas nunca senti tanto alívio ao voltar a ver a luz do sol.

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Da série “Epifanias na Linha 409”:

Glória, 23h20

Motorista diz: “O travesti viu a placa da igreja. Entrou e disse que não queria mais aquela vida pro pastor. O homossexualismo fez dele um cara angustiado, infeliz…”.
Trocador argumenta: “Olha, Severino (e sai da cadeira e se posta no assento na entrada do busão, pernas cruzadas, mãos em prece), existe o inconsciente que opera a transferência…”.
Temi pela integridade física do trocador, da minha e dos demais passageiros, mas o motorista parecia fazer um esforço sincero para acompanhar conceitos como trauma infantil, regressão, projeção e que tais.
Brake. Entra um passageiro.
Passageiro cumprimenta: “Que o senhor esteja entre nós”.
Trocador devolve: “Que Jesus seja louvado. Mas, Severino, retomando de onde parei…”
Na hora de passar a roleta, me deparo com um exemplar das obras completas de Sigmund, a partir do “Mal-estar da Civilização”.
Se Deus existe, deve estar rindo da minha cara até agora.

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A filha desce a ladeira da Marquês de São Vicente em direção ao ponto final do ônibus para voltar pra casa. Estuda numa escola de ‘elite’. Seu uniforme é marca de um ‘privilégio’ que a separa profundamente de grande parte dos jovens e das crianças desta cidade.

Passa sempre com o grupo de meninas que a acompanha em frente a uma escola pública. Volta e meia me conta relatos, como a vez em que a amiga recebeu pedradas dos alunos daquela escola.

– Os meninos que passam de ônibus das escolas públicas nos xingam de patricinhas, mãe…

– E o que você faz, filha?

– Nada, mãe.

Pois é, eu estudei em escola e universidades públicas parte da minha vida. E ainda estudo. Mas que terreno rachado e minado é esse que faz com que crianças e jovens se agridam nas ruas da cidade?

Ver o outro, a priori, como seu inimigo, alimentando o ódio, nos joga na vala comum da violência e burrice. E isso vale para os dois lados do fosso. Não ter a consciência do que nos separa só aumenta esse fosso, onde viceja o pior do humano.  A escola da ‘elite’ constrói pontes? Nós, pais e mães, construímos pontes?

Como disse o pensador existencialista:

“Enquanto houver um único escravo, eu não serei livre”.

 

Roni Filgueiras

Roni Filgueiras é socialista, espinosista, carioca de Ramos, feminista, mãe da Clara, torcedora da Mangueira e do Flamengo. Formou-se em Jornalismo pela ECO-UFRJ, em 1987.Trabalhou como editora, editora assistente, redatora, repórter e crítica de cinema em O Globo, Jornal do Brasil, Veja Rio, O Dia e na SuiGeneris, revista para o público GLS (gays, lésbicas e simpatizantes), sigla substituída pelo LGBTQ+. É membro da Abracine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), do coletivo Elviras - Mulheres Críticas de Cinema e do coletivo RISoMA (Rede Interdisciplinar Sociedades, Memórias e Alimentação). É mestre em Comunicação pelo PPGCOM na UERJ, graduanda em Filosofia na UFF e pesquisadora de doutorado na ECO UFRJ.

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