Chico Buarque em Porto Alegre: música e civilidade

 

 

O que dizer sobre o show de Chico Buarque que vi ontem?

 

Em primeiro lugar, preciso destacar a presença luminosa de Mônica Salmaso no show. Já disse isso por aqui, direi novamente: para mim, ela é a melhor cantora em atividade no Brasil hoje (Bethânia, Zizi e algumas outras veteranas são hors-concours). Salmaso canta as cinco primeiras canções do show e mostra a técnica e a sensibilidade apuradas que possui. A interpretação dela de “Beatriz” botou a casa abaixo. Quando Salmaso canta o verso “Evoé, jovens à vista” de “Paratodos”, o septuagenário Chico Buarque entra jovialmente em cena. O espetáculo é um retrato do Chico Buarque maduríssimo, ou melhor, é um retrato do modo como ele percebe o seu legado de canções.

 

A seleção de repertório é sublime e um tanto desafiadora porque não cede aos lugares comuns que fariam o público cantar junto a plenos pulmões. O show não tem “Apesar de Você” e nem precisa desta canção para passar uma mensagem política. A verdadeira mensagem do show como um todo é a beleza titânica da MÚSICA de Chico. Costuma-se valorizar o Chico letrista em relação ao músico, um erro muito frequente.

 

Chico selecionou cuidadosamente a porção do seu repertório autoral que possui as harmonias e melodias mais sofisticadas, algumas até mesmo ousadas. O efeito cumulativo no espectador é a percepção firme da possibilidade de um Brasil culto, porém popular, aprimorado, mas não elitista, belo, mas não inalcançável. O show é sublime de ponta a ponta. Do álbum “Paratodos”, comparecem no show a faixa-título, “Biscate” (no disco, é dueto de Chico com Gal; no show, Mônica Salmaso não deixa nada a dever à estrela baiana), “Choro bandido” e “Futuros amantes”, todas arrebatadoras. “Morro Dois Irmãos” é uma gratíssima surpresa, mas a aparição inesperada da delicadeza melancólica de “Sabiá” arrebenta o coração do fã. “Que tal um samba”, o show, é uma homenagem ao fã dedicado, aquele que conhece o repertório de Chico a fundo e se entrega a ele de modo total, concentrado, sem oba-oba.

 

Os “hits” são esparsos e foram rigorosamente selecionados. A fusão de “Caravanas” com “Deus lhe pague” é uma patada no peito do Brasil reacionário. Sinceramente, acredito que Chico ofereceu MAIS, MUITO MAIS do que eu esperava na apresentação porque não tomou atalhos, não fez concessões ao gosto médio, mostrou-se como é hoje, um artista completo, dos maiores que conheci. Os músicos que acompanham Chico e Salmaso são do primeiro time, alguns deles legendários: Chico Batera, Jurim Moreira, Luiz Cláudio Ramos e Jorge Helder, todos gigantes, assim como os outros integrantes da banda (Bia Paes Leme, João Rebouças e Marcelo Bernardes).

 

A iluminação e os vídeos são bonitos e suaves, não roubam a cena da música, a verdadeira razão de ser do show. Mais para o final do show, Chico disse que o show não aconteceria se Lula não tivesse vencido a eleição. Entendi o que ele disse de modo mais amplo: a condição de possibilidade do Brasil que o show representa era a derrota da brutalidade fascista que experimentamos desde o golpe de 2016. A canção que dá título ao show, “Que tal um samba?”, vem carregada de referências a Dorival Caymmi e a Vinicius de Moraes. Os dois últimos números do show são duetos que adoçam o coração do público: “Noite dos mascarados”, que Chico gravou com Elis Regina, e “João e Maria”, registrada pelo compositor com Nara Leão.

 

Salmaso mostrou ao vivo que é legítima herdeira de Elis e Nara. Quem sentiu falta de “mais momentos para cantar junto” não pescou a proposta do show, que é a de curar um Brasil dodói não com acenos populistas, mas com rigor estético e moral. Sinceramente, não sei se dei conta do que vi e ouvi ontem com este texto, que foi escrito de uma vez só, sem pausas, de forma rápida. O que sei é que fui levantado do chão pela obra de um dos mais brilhantes artistas que tive o privilégio de conhecer durante a minha existência de batráquio miserável.

 

Ontem, Chico nos deu MUITO MAIS do que queríamos e até do que merecíamos: ele nos deu o melhor que tem a oferecer hoje. Foi uma masterclass de música e de civilidade.

Zeca Azevedo

Zeca Azevedo é. Por enquanto.

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