Céu virou suco
É com aquela malemolência que eu sirvo esse suco de Céu. Com toda certeza é umas das vozes mais lindas e sensuais que temos na atualidade, essa paulistana tem uma mistura de todas as frutas mais deliciosas. Ultrapassando barreiras de gêneros musicais, Céu tem uma obra livre em relação aos elementos sonoros, com toda coerência ela vai do samba ao afrobeat, passando por jazz e R&B sem nenhum estresse, ela voa e se delicia por todo esse universo.
Em 2006 foi indicada ao Grammy Latino, e em 2007 ao Grammy Internacional na categoria “World Music”. É por lá que começo. Seu primeiro trabalho, de 2005 leva seu nome e tem uma das músicas mais sensuais, pra mim, obviamente. “malemolência” é tudo aquilo que a gente não sabe descrever, mas que conquista, desliza, pega pelo braço, subindo pelo pescoço, acariciando os cabelos. Citação devidamente feita a essa maravilhosidade de canção, sigo para o primeiro, primeirão som escolhido aqui, que está também no primeiro álbum: “Lenda”. É a mulher natureza, o sagrado feminino, é o nosso poder: o encantamento
Tá mandado
O seu trono tá plantado
Fica acerca de mim
Seu nome
Na boca do sapo
Sua boca na minha
O resto é boi dormindo
História errada
De carochinha
Vem!
E tome tento
Fique esperto
Hoje não tem papo
Jogo-lhe um quebrante
Num instante
Você vira sapo
Bobeou na crença
Príncipe volta
Ao seu posto
De…
Eu estou aqui, me revirando em areia para decidir e não consigo deixar de citar “10 contados”, que tá no mesmo disco. Assim como não sei decidir de qual álbum mais gosto dentre os seis de estúdio e o ao vivo, de 2014, que tem uma das versões mais bonitas de “Mil e uma noites de amor”, Pepeu deve sorrir também ao ouvir essa leitura gostosa pra caraca. Esperar a volta da pessoa amada, o desejo de estar naquele corpo em um desvio da realidade, em um suspiro de sonho. Os minutos são contados
Maria do Céu Whitaker Poças é filha do maestro Edgar Poças, compositor de jingles e dos sucessos do pop infantil dos anos 1980, e da artista plástica Carolina Whitaker. Céu consegue se espalhar tranquilamente quando mergulha naturalmente em todo esse mar de musicalidade.
É um som envolvente, poderoso e ao mesmo tempo um “xêru” no cangote, é um querer se dó nem piedade. E em “Vagarosa”, 2009, ela segue espantando o frio carregando o ouvinte para os trópicos, com todo aquele suingue sangue bom que está em Cangote:
Fiz minha casa no teu cangote
Não há neste mundo o que me bote
Pra sair daqui
Te pego sorrindo num pensamento
Faz graça de onde fiz meu achego, meu alento
E nem ligo
Como pode, no silêncio, tudo se explicar?!
Vagarosa, me espreguiço
E o que sinto, feito bocejo, vai pegar
Fiz minha casa no teu cangote
Não há neste mundo o que me bote
Pra sair daqui
Mas como nem tudo é feito de algodão doce ou de goiabada, as dores de amar e não ser amado, a ilusão das relações, o eu que percebe o outro e não é percebido. Quem ai nunca foi iludido não se entregou ao caos dos sentimentos humanos. E ai vem a minha terceira escolha, Baile de Ilusão, faixa presente em “Caravana Sereia Bloom” de 2012. É um bailinho gostoso, cheio de cor, é sobre vestir a fantasia e deixar ser apenas fingimento entre os passos de dança.
Nos cadernos de rabiscos meus
Estou eu pensando em ti
Mas vesti uma fantasia
E fingi que esqueci
Nesse baile de ilusão
Só mais uma pela multidão
Regida por decibéis
Serpentina nos meus pés
Dançando pelo salão
A gente se colore depois do choro, deixa o coração partido e perdido para trás, ele se regenera, pode contar com isso. Depois do estrago também é possível colocar a roupa mais bonita e a maquiagem que conta o que queremos ser, que esconde a cicatriz. É quando usamos o perfume que se mistura com o nosso novo cheiro, dessa química resulta o que não se descreve, só se sente.
Em 2016 a artista vem com Tropix, um dos discos mais legais por combinar inúmeros elementos sintéticos, dançantes, faz uma deliciosa ponte entre diferentes tendências de música eletrônica. O quarto disco de estúdio é uma parceria entre a cantora paulistana, Pupillo, baterista do Nação Zumbi, e o músico francês Hervé Salters. Brilha em cada sussurro
Em um crescente, Perfume do Invisível se espalha e convida a dançar. Começando como quem não quer nada, como um cheiro de alguma coisa que ainda não sabemos o que é, mas já gostamos, a faixa desencadeia em um ritmo dançante no refrão. Ela consegue retratar um cenário detalhado as pequenas separações diárias, o tornar-se invisível aos olhos do outro. No fundo a gente sabe que o fim é iminente. E quem nunca engoliu um café preto adoçado com a solidão?
No dia em que eu me tornei invisível
Passei um café preto ao teu lado
Fumei desajustado um cigarro
Vesti a sua camiseta ao contrário
Aguei as plantas que ali secavam
Por isso o cheiro impregnava
O seu juízo, o meu juízo
Invisível e o mundo ao meu favor
Mas como todo fim é bom, o renascimento para o amor acontece e é assim mesmo, a vida é pulsão, é ir e voltar abrir e fechar. Quem não sente o movimento, está morto em partes. E como um grito de sentimentos, “Fênix do Amor”, vem com uma pegada eletrônica cantar essa bricolagem, o mosaico feito por mãos inexperientes, pois não há manual para as coisas do coração. Fênix do amor está em APKÁ! de 2019, trabalho mais recente de Céu que é um elo entre o passado, presente e futuro de sua trajetória. APKÁ! Era uma palavra que os filhos de Céu repetiam felizes, e nada mais justo que nomear um disco com essa palavra que representa um mundo particular, um microcosmo sentido e vividos entre a mãe e suas crias.
Fênix do Amor transita sobre o céu e o inferno dos amores, afinal o amor e o ódio estão separados por um virar de chaves.
Virou matéria prima pro ofício
Que tão firme e cedo escolheria
Tão incansavelmente decidida
Afinal era só uma menina
De um céu, não sei
Qual céu?
Talvez
O inferno tivesse céu
Não era exatamente o que esperava
Como uma resposta pros porquês
Mistérios, cheiros, auras não bastavam
Então trocou de pele para aprender a ser
Realmente não aprendemos a amar, mas só nos entregamos aos sentimentos mais ambivalentes contidos nesta relação, que é construção. Vai dos esquemas mais malemolentes que convidam ao passeio pelos becos mais escuros do interior às rotas de descobrimento iluminado de ser em si. Céu é uma das artistas mais originais e talentosas destes últimos tempos. Espero que tenham gostado deste suco azul, cinza, colorido que é Céu.
Ariana de Oliveira é canhota de esquerda, Cientista Social, estudante de Jornalismo e comunicadora da Rádio Univates FM. Sobre preferências: vai dos clássicos aos alternativos.