Buffalo Tom, verões e tristeza

 

 

São incontáveis as canções de Verão. Eu, que sempre fui um quase-socialista de carteirinha, lamentei de forma perene a ausência em nossa literatura/cultura dessa face redentora do Verão, tão típica da mitologia ianque. Lá em cima, na parte norte da bolota azul e branca, é a época da felicidade materializada, do fim das nuvens e do frio, da chegada do sol, da Suderj informando a substituição do cinza pelo azul.

 

Por conta desses eventos, digamos, naturais, a vida humana, sobretudo a vida humana mais jovem, se vê energizada de tal forma que o impossível parece facilmente alcançável. Até gente mais ou menos carrancuda, como o escritor franco-argelino Albert Camus, um dos pais do existencialismo, capaz de escrever uma obra tão contundente e seca como “O Estrangeiro”, manifestou sua relação com o Verão na bela frase: “nas profundezas do Inverno foi que percebi que existe em mim um Verão invencível”.

 

Isso quer dizer que o Verão é uma metáfora da força vital que existe em todos nós, sem a qual, simplesmente não damos um passo fora de casa. O Verão é tão forte e perfeito que nele não há possibilidade de algo ruim acontecer. Quando isso – por conta de algum alinhamento planetário em que o retorno de Saturno está envolvido – acontece, a vulnerabilidade é total. Stevie Wonder, um homem muito mais doce que Camus, descreveu essa sensação em “Never Dreamed You’d Leave On Summer”, em seu disco “Where I Coming From”, no distante ano de 1971 (e que anos depois foi interpretada de forma emocional pelo próprio compositor no funeral de Michael Jackson).

 

Assim como há o Verão, onde tudo pode, há algo que compensa tamanha felicidade sem amanhã. É o Fim do Verão. Como a própria morte em relação à vida, o Fim do Verão é líquido e certo. Com ele terminarão o amor de Verão, o emprego de Verão, todos os ritos de passagem que essa estação do ano pode trazer para nossa existência. E já te aviso que vai doer, filho/a. Sinto falta de não ter um Verão para lembrar. A vida sempre foi uma constante, uma linha próxima do reto, o mais temível desenho que se pode pensar em termos da associação da matemática com o cotidiano. O gráfico ideal é uma curva, cheia de idas e vindas, felicidades que varam o eixo Y e que fazem pequeno o eixo X, balanceadas por descidas igualmente vertiginosas, que levam a curva quase para fim da página. Se você está numa reta, próxima, controlada, pacífica, sua vida, certamente, não teve Verão ou Fim de Verão nos arquivos.

 

Essa lenga-lenga é motivada pela redescoberta de uma música tão bela que a memória não nos lembra dela o tempo todo. Nos concede a sensação de, mesmo sem ouvi-la por muito tempo, ter a certeza de que a última audição foi ontem, no máximo, anteontem. “Summer”, do Buffalo Tom. Se você ainda não conhece esse trio de Boston, faça de tudo para conseguir, no mínimo, as duas coletâneas “A-Sides” e “B-Sides”, suficientes para uma apresentação de credenciais.

 

O Buffalo Tom nunca foi uma banda de sucesso, permanecendo na categoria dos tesouros bem guardados da década de 1990. “Summer” é de 1995, do disco “Sleepy Eyed”, cuja capa mostra uma garotinha deitada num sofá ostentando caveirinhas no lugar dos olhos. Não se engane, o único demônio presente nesse disco e na obra do Buffalo Tom é o do cotidiano, que torna as coisas mais cinzentas de quando em quando. Bill Janovitz, o vocalista-guitarrista-cérebro da banda, é um erudito. O máximo de sucesso que ele obteve foi associar a imagem da banda a uma série teen americana chamada “My So-Called Life”. Série e banda são iguais: geniais e underrated. A trilha sonora para uma Claire Danes adolescente, ruivinha, inteligente mas infeliz no amor só poderia ser alguma canção do Buffalo Tom, no caso, nada menos que “Taillights Fade” , uma balada cortante e rara no cânon das bandas noventistas. Balada no sentido de andamento da música, zero sacarina, zero firula, apenas o necessário. É sobre rompimentos, partidas, luzes traseiras sumindo na distância escura da noite, conforme o título.

 

“Summer” veio dois anos depois da safra de “Taillights Fade”, que puxou “Let Me Come Over”, segundo disco do grupo, com pinta de que iria arrombar a banca em meio ao estouro grunge daquela época. Qual o quê. Ficou, ao lado de outro Buffalo, o Grant Lee, como privilégio dos que se lembram daqueles tempos, em que bandas legais pipocavam aqui e ali, com seus disquinhos saltitando nas prateleiras da Video Game Center, prontos para serem alugados enquanto o fim do mês não chegava e os discos propriamente ditos não davam as caras nas encarvalhadas estantes da Modern Sound.

 

“Summer” é uma porrada na cara. O próprio Bill Janovitz diz que ela é um amontoado de memórias da adolescência envoltas pela aura do Fim do Verão. Que inveja. Heróis perdidos em desilusão, fragmentos de discursos amorosos nunca ditos, mas ensaiados em frente ao espelho. Meninas que estavam no fim da sala mas que pareciam habitar galáxias distantes, tamanho o abismo entre eu e elas. É cena em cinza e branco, mesmo que o verão brasileiro nos force a uma felicidade tropical de araras azuis voando pelo céu que não combine nem um pouco com a tristeza. E, caramba, o verão aqui é sem fim, o calor é sem fim. Não há nada que sobreviva à banalização neoliberalista dos sentimentos, ainda mais quando ela é climática, meridiânica, sentencianda em Greenwich desde que o primeiro barquinho ousou sair do Tâmisa rumo ao Novo Mundo.

 

O verão daqui drena forças, não as traz. Ele enfraquece, tira do ambiente o ar puro, como se fosse colocado um imenso exaustor na atmosfera, levando tudo para cima, deixando apenas o azul acalorado e abafado de uma cidade à beira-mar como o Rio, que se transforma numa passarela de sambas, blocos e micaretas nada compatíveis com algum traço de tristeza que você possa sentir. Lobão, logo ele, foi sábio em gravar “Ipanema No Ar” em 2000, justamente para fazer uma defesa estética do valor que tardes de chuva e cinzentas alcançam em nossa retina, ainda mais quando têm como pano de fundo a Lagoa Rodrigo de Freitas e chegam ao máximo da ousadia anti-estética em termos de Rio: cobrir o Cristo Redentor. É o Anti-Verão, algo que nos dá força tamanha, equivalente ao Verão lá de cima. É o sagrado direito da auto-comiseração garantido por lei, por clima, por São Pedro. É a hora e a vez de sentir um pouco de não-calor, uma vez que eu respeito a lenda de que o carioca não sente frio, sente frescura.

 

O que “Summer” tem a ver com isso é que ela fornece um passaporte sensorial imediato para quem a ouve. Não importa onde você nasceu, será impossível evitar a porretada do Verão/Anti-Verão em sua vida e os efeitos que isso poderá ter. Essas canções são momentos raros em que a gente se sente ingênuo o bastante a ponto de parecer um adolescente bobo em busca de referenciais enquanto escreve um texto tristinho. Mas o fato é que, talvez desde o início dessa minha nova colaboração com o S&Y, eu não escrevo um texto, digamos, triste. Hoje o clima é esse. Dizem, e eu faço parte desse coro de opiniões, que os sujeitos que se metem a escrever e compor, o fazem melhor quando estão nessa condição, vá saber.

 

Texto originalmente publicado no Scream & Yell. Veja o link aqui.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *