Bowie presente
Hoje David Bowie faz 74 anos. Perdoem o tempo do verbo, mas não considero sua morte. Penso que uma figura de sua dimensão jamais deixa de estar presente, seja por sua influência, seja porque, bem, são incapazes de morrer. A parada dos órgãos é pouco para elas, não as afeta e estão aqui e ali, a nos olhar, influenciar e dizer o que fazer e não fazer. No caso de David, seu aniversário é tão misterioso e esteticamente estranho quanto sua “morte”, visto que os dois eventos ocorreram quase na mesma data, com 69 anos de diferença entre um e outro.
Para recordar a data e exaltar a vida de David, relato algo assombroso que aconteceu comigo. Quando ele lançou seu último disco, “BlackStar”, eu colaborava com o Monkeybuzz e havia recebido a incumbência de resenhá-lo e entregá-lo até o dia 10 de janeiro de 2016. A data caiu numa segunda-feira e eu ouvi o álbum ao longo do fim de semana, escrevi o texto e enviei por e-mail para o sensacional André Felipe Medeiros, meu editor e amigo. Achei “BlackStar” um bom disco de Bowie, mas inferior ao anterior, “The Next Day”, de 2013. Escrevi uma resenha simples, mas apurada e detalhada, como costumo fazer. Era só mais um disco, oras, ainda que um disco de David Bowie. Pois qual não foi o tamanho da minha perplexidade quando recebi a notícia da morte dele, logo na manhã do dia 10 de janeiro…Eu havia escrito o texto horas antes, ouvido o álbum horas antes e talvez tenha sido um dos últimos jornalistas do planeta a avaliar a obra sem a contaminação quase inevitável do evento sobre o conteúdo artístico.
Sendo assim, para homenagear David e para dar a noção de que a “morte” dele é muito relativa e subjetiva, transcrevo a resenha que fiz de “BlackStar”, com o parênteses colocado por André, indicando que ela fora escrita antes da morte do cantor e compositor. É um dos momentos mais intrigantes na minha simpática trajetória como jornalista musical. Vejam o texto abaixo e confiram o link para o texto original aqui.
(Nota do editor: Texto escrito anteriormente ao falecimento do artista, programado para publicação no dia 11 de janeiro. O Monkeybuzz optou por publicá-lo em sua integralidade, respeitando as impressões do autor em um momento prévio à notícia de sua morte)
David Bowie segue criativo e produtivo. Parece que sempre esteve, certo? Até suas obras menos inspiradas gozam de uma incrível complacência da crítica musical e são alvo de adoração cega entre fileiras de fãs novos e novíssimos, atraídos pela maior virtude que a carreira de Bowie tem: a contemporaneidade. Ou melhor, a atemporalidade. Seus discos, até os piores, são fortemente sintonizados com seu tempo, mas de uma forma que a música consegue atravessar os anos com pouca ou nenhuma ruga. E isso se deve à capacidade de Bowie manter-se novo, reinventando-se com várias referências e personas. Talvez as pessoas não tenham notado, mas sua última – e discreta – mutação foi a de assumir a condição de um artista aposentado. Ficou dez anos sem compor e gravar, hiato que foi interrompido com o antecessor deste interessante Blackstar, The Next Day. Se compararmos os álbuns, o anterior ganha em coesão, enquanto o novíssimo adentra mares experimentais, mas sem molhar muito além das canelas.
Há um lado bom no experimentalismo light de têmpera jazzística que Blackstar ostenta orgulhoso. Bowie fez trabalho de pesquisa, fuçou clubes e clubecos de Jazz em Nova York e saiu-se com uma boa banda de apoio (Donny McCasling nos sopros, Ben Monder na guitarra, Jason Lindner nos teclados, Tim Lefebvre no baixo e o extraordinário baterista Mark Guiliana), capaz de fornecer uma argamassa sonora eficaz para o que o Camaleão tinha em mente, ou seja, um disco amorfo, com múltiplas abordagens, sem conceito definido, mas que guarda o padrão Bowie de sintonia com o tempo em que é produzido. Neste caso, a conexão do disco é com certo caos estético e permissivo que o próprio conceito de arte ganhou nestes tempos, com a mídia e a grana exercendo papéis mais decisivos em sua criação. Como é um ser de outra época – ainda que viaje pelo tempo como ninguém – Bowie goza de seu prestígio para dar uma banana pros meios de divulgação e coloca-os a seus pés. É divertido ver como mídias digitais, players virtuais, conceitos vazios e trendsetters em geral lhe devem tributo e se põem mansos aos pés de um disco não mais que interessante, apenas por ser uma obra com o selo Bowie de qualidade.
É bom que se diga que, em termos “bowieanos”, Jazz não é o estilo americano em sua forma mais conhecida, lá dos anos 1950/70. As canções que ele apresenta aqui não se enquadram neste modelo, tampouco beijam a mão do Pop radiofônico emburrecido dos nossos dias, eletrônico, monótono, sem eira nem beira. São híbridos de Rock e Pop setentistas, mas que aspiram o futuro e a transcendência, como suas criações sempre fazem. A abertura com a faixa-título, quase batendo os dez minutos de duração, é um épico progressivo clássico, mas que Bowie nunca pareceu muito interessado em gravar ao longo do tempo. Ele já teve canções de duração longa, com temas intrincados, mas Blackstar, a canção, é bem interessante e ostenta germezinho da estranheza, o que é sempre bom. A melhor faixa do álbum é a seguinte, Tis Pity She Was A Whore, com levada de bateria aerodinâmica, ambiência de saxofones malucos, cantoria sofrida de David e um clima constante crescendo, que dá a impressão de uma corrida rumo a algum lugar. A voz de Bowie também está no limite do drama, quase adentrando o terreno do escárnio.
Lazarus é lenta e climática, já sabemos e não tem lá muitas virtudes, além de uma convincente narrativa pelos porões da grande cidade, algo que Bowie não tem muita pinta de fazer, mas é um pecado menor. Sue (Or In A Season Of A Crime), é uma canção bem melhor, com bateria intrincada, guitarra discreta e efeitos de teclado interessantes, que flutuam aqui e ali, dando ambiência e relevância, mas parece que corre atrás do próprio rabo. Girl Loves Me é um interessante aceno de Bowie a uma espécie de Pop oitentista mais clássico, dramático, coisa que ele mesmo já fez melhor no passado. A grande surpresa vem agora, com a lindíssima Dollar Days, uma balada de amanhecer inspiradíssima, com saxofones, pianos, violões, algo que Bowie não entrega desde o início dos anos 1970. O encerramento com I Can’t Give Everything Away é Pop clássico, leve, com bateria eletrônica e timbres de teclado em bom lugar, chegando a lembrar suavemente a melodia de Unforgetable, sucesso dourado de Nat King Cole, em alguns momentos.
Blackstar é um disco interessante e que passa a impressão de ser feito em sessões divertidas de gravação. Sua análise, entretanto, deve ser em consideração à obra anterior de David ou em relação ao que temos como produto musical hoje em dia? No primeiro caso, é um disco com cotação 6/7, correto, interessante, não mais que isso. No segundo cenário, é quase uma obra de grau máximo. A verdade é que Bowie deve ter adorado trabalhar com gente nova, que trouxe ideias oxigenantes para sua música, fazendo-o ter certeza de que é um eterno jovem. Um bom disco. Um bom disco.
OBS: post atualizado em 08 de janeiro de 2021.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.