Botando fascistas pra correr com Dropkick Murphys

 

 

Se você viu “Os Infiltrados”, filme que Martin Scoresese realizou em 2006 e que lhe deu o primeiro Oscar de Melhor Diretor, certamente conhece o Dropkick Murphys. A canção “I’m Shipping It Up To Boston”, incluída na ótima trilha sonora do longa, serviu como cartão de visitas para o grande público conhecer o trabalho desta banda. Àquela altura, os Murphys já tinham dez anos de existência, cinco discos gravados e faziam um grande sucesso na cena local de Boston e arredores. Com a ação do longa de Scorsese rolando na cidade, o diretor, que é um grande fã de música e já realizou documentários-chave com gente como The Band e Rolling Stones, escolheu a canção para dar uma dimensão mais local ao que seus personagens faziam na tela.

 

 

A canção fora gravada pelos Dropkick Murphys no ano anterior, 2005, em seu álbum “The Warrior’s Code”. De certa forma, este álbum – o quinto da carreira dos sujeitos – marcou a exposição de sua música a públicos maiores. Além de “I’m Shipping It Up To Boston”, outra canção teve enorme sucesso: “Tessie”, uma atualização de uma velha canção sobre baseball, que logo foi adotada pelo mitológico time da cidade, o Boston Red Sox, como tema de sua campanha vencedora em 2004/05. Ou seja, os DM, por meio de várias formações mutantes ao longo do tempo, são uma banda identificada com sua cidade e com seu público local.

 

 

Corta pra 2023.

 

 

Estava eu observando as novidades fonográficas e dei de cara com um álbum chamado “Okemah Rising”, dos mesmos Dropkick Murphys, sendo lançado há cerca de dez dias. Leio a respeito do dito cujo e me dou conta de que ele é o segundo disco que a banda de Boston lança com canções feitas a partir de letras escritas pelo trovador socialista americano Woody Guthrie, o padrinho existencial e artístico de Bob Dylan. O primeiro, lançado há alguns meses, chama-se “This Machine Still Kills Fascists”, fazendo alusão à famosa declaração de Guthrie sobre a eficácia de suas canções e seu violão: “this machine kills fascists”. Uma olhadela nas canções logo revelou que “Okemah Rising” era uma pequena joia, o que me fez explorar também o primeiro disco. Os dois trabalhos foram gravados em Tulsa, no estado americano de Oklahoma, no The Church Studios, que pertenceu ao cantor e compositor Leon Russell, com consentimento e assistência de Nora e Cole Guthrie, filha e neto de Woody e detentores dos direitos de suas canções e manuscritos.

 

 

Tal movimento não era novidade na carreira dos Murphys. A própria “I’m Shipping It Up To Boston”, que aprece numa versão acústica em “Okemah Rising”, foi composta a partir de letra de Woody. Uma olhada na carreira da banda mostra que tal associação faz todo o sentido. O grupo é notadamente sintonizado com o público menos favorecido, especialmente integrantes da chamada working classe americana, os “blue collars”. Ao longo do tempo a banda já fez inúmeras ações voltadas para a comunidade, como, por exemplo, criar um fundo de assistência para crianças e idosos de Boston, o The Claddagh Fund, que tem como missão recuperar pessoas do vício em drogas. Em 2013, por conta do atentado à bomba durante a Maratona de Boston, o Dropkick Murphys colocou uma camiseta à venda com os dizeres “For Boston” (Para Boston) e arrecadou centenas de milhares de dólares, posteriormente enviados para as famílias das vítimas. A banda também doou todo dinheiro das vendas de um EP especial de caridade, com três músicas, intitulado “Rose Tattoo: For Boston Charity EP”, através do ITunes apresentando uma versão regravada de sua música, “Rose Tattoo” com vocais de Bruce Springsteen. O proprio Springsteen contatou a banda após os trágicos eventos perguntando se havia algo que ele pudesse fazer para ajudar. A banda também fez shows beneficentes onde todo o dinheiro foi doado às vítimas.

 

 

 

“This Machine Still Kills Fascists” e “Okemah Rising” são criaturas da mesma origem e circunstâncias. Guardam momentos preciosos, oriundos não só do engajamento da poesia cotidiana de Guthrie, mas da liga sonora bem azeitada que os Murphys criaram ao longo de mais de 20 anos de estrada. O punk hardcore do início da carreira recebeu infusões de musicalidade e instrumentos celtas, como gaitas de fole, acordeon, bandolin e uma série de temas que falam sobre amizade, resistência e comunidade como chave para tudo ser possível numa terra em que nem todos são amigos. Vale lembrar que Boston é uma das cidades com maior número de imigrantes irlandeses no mundo e sua identificação com esses cantos de resistência pelo trabalho e pela união é total. Estes dois álbuns oferecem lindezas como “My Eyes Are Gonna Shine”, “Run, Hitler, Run”, “The Last One”, “Cadillac, Cadillac”, “All You Fonies Are Bound To Lose” (que se transforma em “All You Tories Are Bound To Lose” na Inglaterra) e a impressionante “Gotta Ge To Peekskill”, que conta com a participação da sensacional banda Violet Femmes. A história desta canção fala sobre os distúrbios de Peekskill, Nova York, ocorridos em 1949, quando um show anunciado pelo cantor icônico e defensor da justiça social Paul Robeson foi violentamente pela Ku Klux Klan, levando músicos como Guthrie e Pete Seeger a se juntarem a Robeson em uma apresentação na cidade, com a segurança feita por integrantes de sindicatos.

 

 

Ouvir a música desses caras faz a gente relembrar a todos: os grandes avanços feitos na história sempre surgiram das uniões, dos sindicatos, das cooperativas e associações. Só em grupo é possível enfrentar os enormes adversários que o sistema alimenta.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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