Bebel Gilberto honra a tradição do pai em “João”

 

 

 

 

 

Bebel Gilberto – João
40′, 11 faixas
(PIAS)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

“João”, o novo trabalho de Bebel Gilberto, é uma aula de reverência e respeito por um ícone cultural do século passado. É mais que uma declaração de amor de filha para pai, é um verdadeiro momento suspenso no ar. Já faz tempo que a influência cultural da bossa nova foi assimilada por vários músicos ao redor do mundo, que, variando de lugar, deram contornos peculiares, de acordo com suas experiências pessoais, mas, em essência, preservaram um traço em comum – a modernidade. A bossa nasceu como uma visão moderna e musical de um Brasil que seria próspero num futuro que nunca aconteceu. Historicamente é um estilo que pressupõe esclarecimento, capacidade de apreciar uma beleza peculiar, tem a ver com estar no mundo, de uma forma brasileira. Para muita gente, a expressão máxima da cultura nacional como parte de uma coletividade mundial. Claro que a gente não lembra dessas questões históricas e culturais quando ouve disco clássico de João Gilberto ou Tom Jobim, mas, bem, tudo o que eles gravaram e pensaram sobre música em suas carreiras tem a ver com esse preceito. E Bebel, pleno 2023, se arvorou a despertar clássicos desse repertório imortal, algo arriscado porque, como já diziam os historiadores do tempo presente e Renato Russo, “o futuro não é como era antigamente”.

 

 

“João”, o disco, é uma deliciosa rasteira no futuro que se concretizou, essa época inócua, em que fascismos, militarismos, burrismos e similares teimam em estar presentes no nosso cotidiano acelerado e meio sem sentido. Sendo a bossa nova um estilo que exige circunavegação por parte do ouvinte, é preciso diminuir o ritmo do dia a dia pois, só assim é possível apreciar a singela obra que a filha de João Gilberto oferece. Produzido e gravado nos Estados Unidos, o álbum tem no multi-instrumentista Thomas Bartlett seu arquiteto sonoro principal. Enquanto Bebel entra com sua voz gente e precisa, Bartlett cumpre a missão de fornecer um arcabouço sonoro que honre a tradição modernista do estilo e que, ao mesmo tempo, situe tudo em 2023. Ele faz isso com clareza e inspiração, com uma produção que ressalta os tons baixos, os climas e insinuações, também usando sutilezas eletrônicas que fazem a diferença. Longe de ser um novato, Thomas já assinou álbuns de Norah Jones, Rufus Wainwright, Sufjan Stevens e da própria Bebel. Ou seja, o cara sabe o que está fazendo.

 

 

João Gilberto foi um dos maiores intérpretes da música popular planetária, sem qualquer exagero. Poucos criaram algo tão novo sobre bases tão seculares – samba, jazz, tradições mil. Além disso, o homem era compositor pra lá de bissexto. E Bebel, melhor do que ninguém, sabe e valoriza esta faceta do pai, a ponto de inserir no repertório de “João” duas dessas composições: a adorável “Valsa: Como São Lindos Todos Os Youguis” e “Undiú”, ambas registradas no álbum de 1973, conhecido como “o álbum branco” do mestre. Tais escolhas ampliam o espectro sonoro do álbum e apontam uma bem-vinda intimidade com seu legado, algo que soa muito apropriado neste contexto. As outras nove faixas de “João” investem sobre grandes canções imortalizadas por ele ao longo de sua trajetória, jamais tentando emular seu estilo inconfundível, mas ampliando as canções para que caibam confortavelmente no repertório e no approach de Bebel que, longe de ser uma artista nostálgica, é uma das grandes cantoras brasileiras no mundo, que leva e traz várias influências de vários tempos.

 

 

É especialmente bela a releitura de “É Preciso Perdoar”, uma das canções mais lindas já feitas, que João interpretou duas vezes: no já mencionado álbum branco de 1973 e no segundo trabalho colaborativo com o saxofonista Stan Getz, de 1975. Bebel a revisita com humildade e vigor, com um resultado próximo da perfeição, com destaque para a sutileza de Bartlett e a presença do sobrinho de Bebel, Chico Brown, nos teclados e bateria. Igualmente valiosa é a versão de “Adeus América”, que João gravou ao vivo em Montreux, em 1985. É canção de anti-exílio, de gente que não aguenta de saudade de casa e deseja voltar. Nela o violão de Guilherme Monteiro assume o ritmo tradicional da bossa nova, criado por João no fim dos anos 1950. “O Pato” e “Eu Vim da Bahia”, dois standards do repertório joãogibertiano reaparecem em leituras elegantes sob medida para Bebel, que consegue imprimir sua marca em ambas. “Ela é Carioca” e “Desafinado”, duas pedras filosofais da bossa também estão aqui, assim como “Você e Eu”, de Carlos Lyra, outra lindeza litorânea daqueles tempos. E digna de aplausos é a inclusão de “Eclipse”, do cantor e compositor cubano, Ernesto Lecuona, que encerrava o esquecido álbum “João Gilberto en México”, de 1970.

 

 

“João” não quer ser definitivo em sua proposta de homenagear um pai e um ícone da música popular. É, sim, um carinho, um olhar afetuoso, uma despedida/revisita, ou seja, é um trabalho totalmente emocional, como só poderia ser. Bravo, Bebel.

 

Ouça primeiro: o disco todo.

 

 

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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