Vitor Ramil e seu impressionante “Avenida Angélica”
Vitor Ramil – Avenida Angélica
Gênero: MPB, folk
Duração: 47:42 min.
Faixas: 18
Produção: Vitor Ramil
Gravadora: Satolep
Em primeiro lugar, que fique claro: “Avenida Angélica”, novo álbum de Vitor Ramil, é sensacional. Só com esta frase, você pode salvar o texto para ler mais tarde ou, melhor ainda, pode ir no seu serviço de streaming preferido e colocar o disco para tocar enquanto me lê aqui. Numa ou noutra opção, você vai se espantar com a riqueza lírica e melódica que o décimo segundo trabalho do cantor, escritor, compositor e intelectual gaúcho ostenta. Construído a partir da leitura pessoal de Vítor sobre poemas de Angélica Freitas, poeta gaúcha, da mesma Pelotas que os Ramil, os dois só foram se conhecer nos anos 2000, quando ela morava na Holanda. Só quando regressou à cidade natal é que Vitor foi saber que os dois eram vizinhos próximos. Este descompasso geográfico, no entanto, não é notado ao longo das faixas do álbum, pelo contrário. O que Ramil obtém aqui é um resultado tão impressionante e rico que não há outra escolha a não ser embarcar no mundo de referências pessoais e pop que Angélica imprime em seus poemas. Aliás, a fidelidade da adaptação dos textos para o formato canção respeitou quase integralmente o que ela havia escrito. Sendo assim, com respeito e afinco, as faixas que surgiram compõem um painel de crônicas e visões de quem nasceu entre os anos 1960/70 e cresceu numa cidade do interior, crescendo e ganhando o mundo.
“Avenida Angélica” nasceu audiovisual. O cantor pensou em apresentações que percorreriam algumas cidades e não se deu conta de que dispunha de um material que também poderia ser um álbum. Concebido como show e com viabilidade prejudicada pela pandemia, Vitor decidiu fazer uma gravação ao vivo, como se estivesse diante de uma plateia, usando toda a parafernália para captação sonora de um palco, procurando registrar tudo com o mínimo de – muitas vezes nenhum – overdubs, obtendo assim um resultado praticamente equivalente ao “ao vivo”. O palco escolhido foi o Theatro Sete de Abril, em Pelotas, com duas noites em agosto de 2021. Ali, com cenografia de palco e recursos sonoros configurados para voz e violão, Vitor achou a melhor tradução do repertório que havia construído e o registro em vídeo – disponível no Youtube, neste link – consegue dar à apresentação um ar completamente diferente de tudo o que se costuma ver no gênero. Igualmente acolhedor, como estranho, o conteúdo de “Avenida Angélica” é magnético.
Vitor Ramil já tem uma carreira consolidada há muito tempo. Dá pra dizer que ele é um artista brasileiro com trajetória única, saindo da cena pop dos anos 1980, adentrando os anos 1990 em busca de uma identidade em meio à demandas de um mercado lidando com a globalização, para chegar aos anos 2000 de vento em popa com a tendência que acabou prevalecendo – a independência das gravadoras. Deste jeito, com ideias próprias e que dão à sua carreira um ar de constante mutação, ele ergueu um repertório que compreende milongas, folk, MPB, rock, jazz, blues e visões de mundo que são caracterizadas por uma narração que oscila entre a primeira e a terceira pessoa, levando para suas composições muito do que faz quando escreve livros e novelas. Só que, em “Avenida Angélica”, esta maneira de compor foi modificada totalmente para caber o conteúdo lírico, que veio de outra fonte muito diversa e exuberante. Por isso é um álbum tão distinto numa carreira de trabalhos distintos.
O feixe de dezoito faixas tem vinhetas, passagens, recitais e a maioria de canções. Tudo é de extremo bom gosto e elegância minimalista, mas sem sutilezas. As letras são muito diretas e cheias de referências, algo que já se percebe de imediato, com “Rilke Shake”. A partir dela, as fronteiras entre erudição e popular são borradas, com narrativas belas como a de “Família Vende Tudo”, cheia de cenas de um cotidiano comum a várias gerações de brasileiros de classe média e/ou baixa. Em “A Mina de Ouro de Minha Mãe e Minha Tia”, as idas e vindas de “empreendedores” é retratada novamente de forma familiar, a ponto de despertar empatia no ouvinte logo de bate pronto. Outras canções belas são “Vida Aérea” e “R.C”, que resume o amor e a importância das canções do rádio na formação do caráter e da personalidade ao longo dos tempos.
“Avenida Angélica” tem conteúdo para ser filme, peça de teatro, livro e disco. O ouvinte percebe que está diante de um espetáculo que só se impõe pela diversidade/necessidade de expressão em múltiplas formas de arte. É algo imenso, belo e que vai aconchegar o espectador numa espécie de sala de espelhos de experiências e vivências cotidianas e afetivas. Coisa linda.
Ouça primeiro: o disco todo.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.