As ótimas lives raiz

 

 

Quis o destino da pandemia que as lives se tornassem eventos importantes no circuito cultural. E também o quis que a gente as assistisse com olhar e ouvido críticos, para dar uma ideia ao leitor sobre os significados e detalhes dessas transmissões. Muitas delas foram alvo de críticas por conta de detalhes que não são pertencentes ao universo íntimo e improvisado que as lives tinham/têm desde seu início. Na verdade, elas nunca foram eventos formais, pelo contrário. Só que a tal intimidade foi encampada por um exército de tiques e taques mercadológicos, que comprometeram a função original das lives, transformando-as em ações de mercado, algo que, sinceramente, acho abjeto. Claro, há como escapar dessa armadilha com certa dignidade. Anitta, por exemplo, deixou a propaganda da Claro em segundo plano. Ivete Sangalo usou tanto nonsense involuntário que era impossível lembrar que tudo aquilo era uma ação bem pensada do Grupo Globo e de todos os seus anunciantes mais próximos. E há as “lives raiz”, que ainda teimam em dar as caras, felizmente. Entre os artistas que se valeram destas, Leoni, Fernanda Abreu e Marcelo Camelo são ótimos exemplos do que fazer.

 

Em primeiro lugar: em live não cabe superprodução. Se quer algo assim, vai ver um show no DVD. Por ora, assim como a gente não pode sair de casa, o artista também não. E só deveria ser possível se apresentar com o mínimo de instrumentos e produção. Roberto Carlos usou três teclados. Anitta usou violões e teclados. Então dá. É só ter em mente o significado da coisa. No caso dos exemplos deste texto, Marcelo Camelo e Leoni surgiram com violões, enquanto Fernanda Abreu cantou sobre uma base pré-gravada e com seu baterista Tuto. A impressão foi de que tudo era espontâneo e dedicado aos fãs, com carinho e atenção, livre de qualquer ação mercadológica, patrocínio ou algo assim. Sim, não dá pra ter patrocínio em live, sinto muito.

 

Leoni fez na segunda-feira, dia 27 de abril, a sua quarta live no período da quarentena. Todas são no mesmo formato, com o cantor e compositor carioca acompanhado por seu violão, cantando na sala de sua casa. De vez em quando, seu filho, Antônio, participa ou ajuda na gerência de microfones e Internet. O sinal já caiu, o som já pifou mas Leoni, como experiente artista que é, segurou as pontas com ótimo humor e um clima de conversa para amigos. Zero forcação de barra, zero ação estudada, 100% sinceridade. Esta mais recente foi para atender os pedidos de quem estivesse online na hora da transmissão. As outras foram com lados-B, canções de outros compositores e maiores sucessos, sempre legais, sempre com mais de 5 mil pessoas acompanhando.

 

 

Fernanda Abreu esteve online no dia 24 de abril, com o título de “Live do Ben”, dando espaço para canções mais emblemáticas de sua carreira, mas aproveitando o atual momento da cantora, no qual ela soltou o single “Do Ben” pouco antes da pandemia ter início. Aliás, Fernanda estava no camarim do Imperator, no Rio, quando recebeu o aviso para não subir ao palco, uma vez que o decreto proibindo aglomerações havia sido baixado pelo governador do estado, Wilson Witzel, horas antes. Ela e os músicos se apresentaram mesmo assim e aproveitaram para gravar um DVD ainda inédito, que vai comemorar os 30 anos de sua carreira solo. No repertório, além de “Do Ben”, estão clássicos como “Você Pra Mim”, “Speedracer” e “Rio Quarenta Graus”, além das releituras de “Eu Vou Torcer” e “Jorge de Capadócia”, ambas de Jorge Ben. Fernanda estava à vontade, de óculos, com Tuto a seu lado e em contato com pessoas que cuidavam do som e das mensagens do whatsapp remotamente.

 

 

Fechando o hall das lives sinceras, Marcelo Camelo se apresentou ontem à noite, acompanhado apenas de seu violão. Com carinho especial pela família – principalmente seu pai, que parece se recuperar de algum problema de saúde – ele agradeceu a médicos, enfermeiros e dedicou o evento a ele. Cumprimentou fãs, familiares e a esposa, Mallu Magalhães, tudo num clima extremamente informal e íntimo. Desfilou canções dos Los Hermanos (“Casa Pré-Fabricada”, “Pois É”) e solo (“Luzes da Cidade”, “Janta”, esta, com Mallu participando), apresentando quatro canções inéditas, que constarão do álbum que ele está por lançar. Nervoso, errando alguns trechos e pedindo desculpas, Camelo também se mostrou capaz de dividir sua intimidade diante das câmeras, algo que é muito mais valioso neste momento.

 

 

Estes três exemplos servem para mostrar uma tendência bem clara em meio à proliferação de lives. Você pode escolher entre as versões super-produzidas, patrocinadas e desprovidas dos elementos fundamentais deste tipo de evento ou, sim, pode-deve prestigiar os artistas que estão aproveitando o momento para estabelecer reais canais de contato com seus fãs ou se desdobrando para mostrar originalidade sem comprometer o caráter artístico de seus trabalhos. As opções estão aí, nós estamos aqui para dar opinião e você pode escolher com muito mais elementos para levar em conta. Boa diversão e não saia de casa.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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