Dissecando Surfer Rosa

 

 

Em 2019, a Pixies lançou Beneath the Eyrie, seu sétimo álbum de estúdio. Taí um bom motivo para revisitarmos o primeiro long play da banda, chamando atenção para alguns pontos que fazem dela uma das mais interessantes dos sons alternativos. Divulgado em 1988, Surfer Rosa foi a sequência do mini-álbum Come on Pilgrim. Com suas treze faixas em pouco mais de 33 minutos, Surfer Rosa levou o grupo de Boston (EUA) a receber elogios efusivos, especialmente na Europa, terra da gravadora 4AD. Tal recepção conferiu confiança à banda (formada na época por Black Francis, Kim Deal, Joey Santiago e David Lovering) para partir para o segundo LP, Doolittle (1989), o melhor da carreira segundo muita gente. Isso não nos impede de procurar por boas razões para apreciar, e muito, Surfer Rosa. Aí vão minhas cinco.

 

  1. Um som estranhamente pop

 

Estranha, sem deixar de ter um lado pop: é uma impressão comum sobre a sonoridade da Pixies. A banda mistura surf guitar, rock achicanado e referências folk a agressividade e minimalismo punk, não necessariamente nessa ordem e sem cair sempre no mesmo resultado. “Brick is Red” é basicamente rock’n’roll, revelando influências sessentistas. “Vamos” e “Oh my Golly!” soam como música de mariachis envenenada, a segunda delas com letra em espanhol. Há pancadarias que mostram o lado punk da banda: “Tony’s theme”, “I’m Amazed”, estas bem marcadas pelo som achicanado, além de “Something against you” e “Broken Face”, mais próximas das estranhezas pixerianas. Mas há também músicas que flertam com o minimalismo, com compassos mais lentos: “Where’s my Mind?”, com seu obsessivo riff de guitarra, e “Cactus”, árida como seu título. E, finalmente, há faixas em que as várias sonoridades e fontes se fundem para gerar algo difícil de descrever: “Bone Machine”, “Break my body”, que abrem o álbum, “Gigantic” e “River Euphrates”, que fecham, na versão em vinil, o primeiro lado. A bateria segura de Lovering e o baixo pulsante e marcado de Deal formam a base robusta para as guitarras de Santiago e Francis e para as vozes de Black e Kim. O trabalho da guitarra de Santigo sobressai nessas faixas (assim como em “Where’s my Mind?”), soando de um modo (mântrico, abrasivo, ponti-agudo, enfeitiçante) que nos transporta para fora de nossa mente. Arrepiante. Bizarro. E, no entanto, com elementos do pop, especialmente em “Gigantic”, “Where’s my Mind?” e na menos conhecida “Brick is Red”. Uma mistura com resultados inconfundíveis.

 

 

  1. O estúdio é parte da música

 

Steve Albini foi o produtor de Surfer Rosa, gravado em apenas 10 dias em um estúdio de Boston. Mesmo que tenha sido um encontro fugaz, ele foi fundamental para definir a sonoridade do álbum. Albini não morreu de amores pelo estúdio, o que o obrigou a improvisar para obter o que buscava. Alguns vocais foram gravados no banheiro ou processados em amplificadores. Os guitarristas usaram palhetas metálicas. Há algumas esquisitices, como diálogos entre Black e Kim no meio do lado dois. Teclados foram excluídos, com exceção de uma sutil inserção em “Gigantic”. Mais importante: Albini projetou uma acústica que destacava bateria, baixo e guitarras, jogando as vozes para o fundo. O resultado é um som orgânico, que envelheceu pouquíssimo, muito diferente do que aconteceu com tanta coisa gravada nos anos 80.

 

Vale ainda notar que em 1987 Albini não era um produtor muito conhecido. Surfer Rosa chamou atenção para seu trabalho e está entre as razões que levaram gente muito boa a dizer: quero esse cara pra mim! Estamos falando de Rid of Me, de P.J.Harvey, e de In Utero, do Nirvana. The Breeders, banda à qual Kim Deal se dedicaria paralelamente à Pixies, chamou também Albini para produzir seu primeiro álbum, Pod, cuja sonoridade é uma de suas qualidades. Surfer Rosa e esses outros álbuns estão aí para nos lembrar a importância do estúdio, e do pessoal que trabalha ali, para o som de uma banda.

 

 

  1. Cantar também é gritar, e vice-versa

 

Estar no fundo não significa não ser importante. As vozes têm um papel fundamental na Pixies e Surfer Rosa mostra muito bem isso. Os duetos de Black e Kim são impressionantes. Black é o vocalista principal, mas em muitas músicas a participação de Kim está longe de ser secundária. Em geral a dupla faz um contraponto, Kim com a voz mais suave e estável, permitindo que Black transborde e extrapole. São poucas as faixas em que Black não grita. Há gritos de todo tipo: primais, em “Bone Machine”; feéricos, em “Broken Face”; “huh huh”, como grafa a letra de “Oh my Golly!”; achicanados, em “Vamos”; urros, no final de “River Euphrates”… Os refrãos de duas músicas (“Something against you” e “I’m amazed”) são basicamente esporros verbais. Em “Tony’s theme”, Black e Kim gritam juntos o nome do herói da história, de um jeito que mais parece um latido, um espasmo. Na verdade, a coisa vai além, pois várias vezes o que grita é a guitarra de Santiago (confira “Gigantic” e “Vamos”), zunindo feito uma besta não identificada.

 

O contraponto entre as vozes de Black e Kim explora variações que confundem as fronteiras entre masculino e feminino, entre humano e animal, entre suavidade e agressividade, entre demoníaco e angelical. Esse contraponto é parte fundamental da dinâmica quiet-loud que caracteriza o som da Pixies e que veio a influenciar muita gente nos anos 90. Ele é ainda um dos elementos em que se sustenta o quase-pop bastante-estranho da banda.

 

 

 

  1. Sexo, religião e corpos mutilados em uma obra surrealista

 

A maioria das letras da Pixies em seus primeiros quatro álbuns não trata exatamente de “algo” ou narra propriamente “uma historinha”. São textos visuais, que preferem falar da realidade recorrendo a alusões, fragmentos e colagens. Alguns temas sobressaem, como o corpo, descarnado até os ossos, exposto a mutilações (“Bone Machine”, “Broken Face”, “Break my Body”). Há muito sexo, especialmente na forma de desejo. Nisso, “Cactus” é um esmero: “Corra lá fora no calor do deserto / Deixe seu vestido molhar e mande-o pra mim”. E alguma religião, algo que tem a ver com a passagem do adolescente Charles Thompson (nome real de Black) por igrejas cristãs e com suas leituras da Bíblia. Nas suas letras, a religião é virada do avesso para mostrar o desejo. “Oh my Golly!” – notando-se que Golly é uma corruptela de God – é uma ode, em um espanhol torto, para a surfista Rosa, uma deusa em que se quer tocar.

 

Na capa do vinil, a letra de “Oh my Golly!” está transcrita, abaixo de uma fotografia. Nela, uma moça traja um vestido flamenco e parece estar no meio de uma dança. Não há nada cobrindo seus peitos e atrás dela há um crucifixo na parede. Nudez e religião estão juntas. Pode-se ver semelhanças entre essa fotografia de Simon Larbalestier e a série de imagens intitulada “Explosante Fixe”, produzida no início dos anos 1930 por Man Ray, artista surrealista. De fato, o surrealismo é uma das influências para a Pixies, especialmente para Francis. Em “Debaser”, faixa de Doolittle, ele confessa seu encantamento por Um Cão Andaluz, filme paradigmático do surrealismo. A obsessão com sexo, religião e corpos deformados também pode ser associada ao surrealismo, assim como um estilo de composição que pouco preza a coerência. Pode-se dizer que Surfer Rosa é uma obra surrealista.

 

 

  1. Rock conjugado no feminino

 

Kim Deal aparece nos créditos do álbum como “Mrs. John Murphy”. Ela tira sarro de um comentário que uma vez escutara: ser nomeada como esposa de alguém é sinal de respeitabilidade. Mas a opção da baixista e vocalista da Pixies era também endereçada para a banda: há uma mulher aqui! Dona de uma personalidade forte, Kim desafiava a liderança de Black Francis, que igualmente se destacava em relação aos colegas mais introvertidos. Desse ponto de vista, o contraponto entre as vozes de Kim e Black expressava a tensão que existia entre eles – que aparece ainda nos diálogos gravados no álbum e que acabaria por ser uma das principais razões para a interrupção dos trabalhos da banda em 1992.

 

Nenhuma música de Surfer Rosa expressa melhor essa tensão do que “Gigantic”. Nessa faixa, a dominância vocal se inverte, Kim sendo a voz principal. Além disso, é a única canção em que ela aparece como compositora, coisa que poucas vezes viria a se repetir na história da banda. A letra é em si significativa. Segundo Kim, inspira-se em sua experiência com um filme, Crimes of the Heart, de 1986. Ela destaca do filme a relação entre uma mulher branca e um homem negro mais jovem. Em uma entrevista em que explica seu ponto de vista, ela nota que o relacionamento tem lugar há algumas décadas atrás, quando era considerado um tabu. Nesse quadro, o refrão é cheio de sugestões, embora Francis sustente que “gigantic” tem a ver com a progressão de acordes nessa parte da música. Se ficamos com a versão de Kim, precisamos admitir que a letra expõe uma visão feminina de um encontro inter-racial, introduzindo um tema que, mesmo sem qualquer pretensão de comentário político, abre uma pista distinta daquele que aparece nas letras que revelam o universo conturbado de Francis e suas ansiedades juvenis e masculinas.

 

Diante das tensões na Pixies, não parece casual que a razão se invertesse na Breeders: nessa banda, Kim, além de tocar guitarra, seria a principal vocalista e compositora, estando acompanhada de duas mulheres e um homem. Ficaria sacramentada a inclusão de Kim Deal no panteão das mulheres fodonas do pós-punk. Ao mesmo tempo, certamente sem o som da Pixies as Breeders não seriam o que foram em seus álbuns. Taí mais um bom motivo para escutarmos Surfer Rosa: rock conjugado no feminino.

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

2 thoughts on “Dissecando Surfer Rosa

  • 1 de maio de 2020 em 23:13
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    Sempre revisito os Pixies. Foi fundamental para meu desabrochar para o rock e, principalmente para a musicalidade. A primeira “ouvida”, foi marcante. Fiquei perplexo, espantando pelo som que saia das caixas de som. Jamais uma banda me marcou tanto!!!
    Surfer Rosa é um incrível disco, mas meu preferido, é o menos preferido dos fãs, Trompe le Monde.

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    • 3 de maio de 2020 em 11:05
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      Obrigado pelo comentário, Fernando. Conheço outras pessoas que preferem também o Trompe le Monde, com certeza um álbum bem legal. Letter to Memphis é uma maravilha! Mas dá prá sentir bastante as diferenças com o Surfer Rosa na sonoridade. É como se Surfer Rosa fosse a banda tocando em uma espelunca e em Trompe le Monde a banda está em um estádio. De todo modo, Pixies é fundamental.

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