O simbolismo de Lula

 

 

Quando saiu do governo em 1945 após 15 anos, Getúlio Vargas era conhecido como “ditador” e “pai dos pobres”. Dois termos teoricamente opostos, certo? Porque Vargas, a partir de 1937, implantara o Estado Novo e suspendera o Congresso Nacional. Se tal medida é essencialmente anti-democrática, por outro lado, ele conseguiu avançar em vários setores da economia, especialmente com a fundação de empresas estatais, entre elas a Companhia Siderúrgica Nacional (1940), a Companhia Vale do Rio Doce (1942), a Fábrica Nacional de Motores (1943) e a Hidrelétrica do Vale do São Francisco (1945), essenciais para buscar a tão falada soberania nacional. E, mais que isso, foi no período Vargas que muitos historiadores afirmam ter acontecido, de fato, um avanço em relação à emancipação da classe trabalhadora brasileira, especialmente a rural. Muita gente só saiu da lógica escravista a partir de 1930, 42 anos depois da “abolição da escravidão”. Muita gente só recebeu tratamento médico, viu a luz elétrica, água encanada, enfim, estas instãncias básicas da dignidade a partir do período Vargas.

 

O governo que sucedeu “Gegê” foi o do General Dutra, que veio ao poder apoiado por setores conservadores da sociedade, embebida pela vitória aliada na Segunda Guerra Mundial. O Brasil pouco avançou, apesar de Dutra ter uma peça de propaganda chamada “Plano SALTE” – Saúde, alimentação, trabalho e economia – que pouco saiu do papel. De seu governo lembramos da inflação, dos bambolês e ioiôs feitos com plástico excedente do esforço de guerra americano, do amadorismo no sediamento da Copa do Mundo de 1950 e da estrada que liga Rio a São Paulo, a BR-1, que levou o seu nome. E só. Por essas e outras que Getúlio – ditador, ultrapassado, corrupto, termos que seus opositores e a imprensa lhe imputavam – foi eleito democraticamente em 1951, para desespero dessa mesma gente.

 

Corta para 2021. Ontem foi anunciada a suspensão das condenações impostas a Lula nos processos julgados pela Justiça Federal de Curitiba, evidenciando a suspeição do juiz sergio moro e dos procuradores da lava-jato. Agora, elegível novamente, ele foi saudado como uma possibilidade de dar ao país um rumo diferente do que estamos vivendo atualmente, caracterizado pela ruína pessoal e pública, sob os auspícios tragicômicos dessa gente que está aboletada no poder. Sabemos que não é fácil, mas a restauração da liberdade de Lula deve ser saudada por qualquer pessoa que tenha a democracia como luz guia, independente da sua convicção política. E desde ontem, enquanto muitos celebravam, outros tantos destilavam um discurso de ódio que foi habilmente plantado em suas mentes, a tal ponto de muitas pessoas atacarem e ajudarem na destruição de um período político altamente proveitoso para o país e para a classe média.

 

Muito mais do que Getúlio, Lula foi um conciliador. Entendeu – numa opção controversa até hoje – que não conseguiria ir muito longe em seu governo se não fizesse algumas concessões às elites nacionais. E ele o fez, num movimento que gerou desaprovação em muitos de seus apoiadores na época. Era o “Lulinha Paz e Amor”. Pois, se esta atitude lhe custou apoio dos setores mais progressistas, possibilitou o avanço do país no setor de infraestrutura, a construção de várias universidades públicas, programas essenciais como o Luz Para Todos, o Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida, que concederam melhorias para parcelas significativas da população. Tais medidas, num governo que, por outro lado, não descuidou dos empresários e da classe média, possibilitando o aumento do consumo, a facilidade do crédito, foi extremamente bem sucedido sem causar muito impacto no capital internacional. Faltou muita coisa para ser feita, como um investimento muito maior na educação e na cultura, mas aquilo foi o início. Lula era unanimidade. Batia papo com Obama e com Putin. Sucesso de público.

 

Mas, bem, o capitalismo enfrentou sua crise mais severa em 2008, a época em que o mesmo Lula disse que os efeitos do “tsunami” econômico seria uma simples “marolinha” quando batesse na nossa praia. Bem, não foi exatamente assim, sabemos bem. Mas o Governo Dilma, especialmente o segundo, eleito na bacia das almas contra aécio neves, sofreu o impacto político de forma integral, sendo obrigado a conceder espaço para pessoas ligadas umbilicalmente ao capital internacional – de um jeito que Lula não precisara fazer – como joaquim levy, que foi colocado no ministério da Fazenda e não conseguiu frear os impactos da crise mundial, especialmente por conta dos problemas com o preço do petróleo e outras instâncias. E também porque este segundo governo Dilma não conseguiu governar, dado o bloqueio que foi implantado no Congresso Nacional, muito porque Dilma não era uma mulher de fazer acordos e ceder a pressões. Muito mais rígida que o próprio Lula, por exemplo.

 

Mesmo com este passado conciliador, de amor pelos mais pobres mas também pela classe média, Lula surge como uma opção concreta para as eleições do ano que vem, se tudo funcionar democraticamente até lá. Caso se candidate, ele será o símbolo de uma nova conciliação, de empresas e empregados. Seu simbolismo é muito forte, a simples sugestão de sua volta já causou impactos no “mercado” e já fez a péssima imprensa nacional falar em “polarização”.

 

Ora, se o governo atual é péssimo sob todos os pontos de vista e análise, o que poderia ser melhor do que a chance de escolhermos algo diametralmente, essencialmente oposto? Com a volta de Lula, é como se fosse possível pensar numa alternativa em que haja novamente chances muita gente que perdeu tudo nesta pandemia. Com Lula no governo, posso apostar tudo que tenho que jamais teríamos 270 mil mortos – e contando – por causa da covid-19.

 

No cúmulo da desonestidade, uma matéria de um jornal da capital paulista informava ao seu leitor o que fazer com seus investimentos agora que Lula poderia se candidatar novamente. É uma manchete que acusa o que estamos vivendo. Quem pode ter investimentos numa época como a nossa? Apenas quem tem condições de não sofrer os impactos da pandemia, que não tem seu trabalho precarizado, que tem casa própria, enfim, pessoas da classe média alta para cima. O resto da população, imersa no caos econômico, na alta dos preços da carne, do arroz, do feijão, quer investir o que quase já não ganha por mês na compra de carne moída. Pelo menos.

 

Lula simboliza algumas características essenciais do Brasil que parecem ter sumido da vista com o atual governo. Lula simboliza, em última essência, uma opção melhor de governo, com avanços, com retomadas, com perspectivas. E não esse presente com cara de passado e jeito de futuro distópico que estamos vivendo todos os dias.

 

A Célula Pop tem “Lula” no nome e isso não é acaso. E nos orgulhamos disso.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

5 thoughts on “O simbolismo de Lula

  • 9 de março de 2021 em 22:06
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    Mais do que uma análise, uma aula de história contemporânea do Brasil. Parabéns, Professor !

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    • 10 de março de 2021 em 23:39
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      Fiquei completamente arrepiado com o seu texto, CEL.
      Desde segunda feira, sinto uma esperança e já falei ao meu filho de dez anos, que tudo dando certo, dia 01 de janeiro de 2023, estaremos em Brasília, naquela que será a repetição da linda festa de 2003

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    • 11 de março de 2021 em 01:08
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      Obrigado, meu caro.

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  • 9 de março de 2021 em 10:10
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    É isso aí!!!!
    Lindo texto.

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