As mortes de Louro José e Baleia

 

 

Estava assistindo ao jogo Flamengo x São Paulo, no domingo, dia 1º/11, quando, mais para o fim da partida, o narrador Luiz Roberto, da Rede Globo, deu a notícia da morte do ator Tom Veiga, manipulador do boneco Louro José. Ainda jovem, Veiga faleceu por conta de problemas decorrentes de um aneurisma. Informações posteriores deram conta de ser um AVC. Triste, afinal de contas, o sujeito foi reconhecido como ótima pessoa por vários companheiros, perdeu a vida jovem e ainda privou os brasileiros da presença de um personagem, digamos, bastante presente nas manhãs dos brasileiros. E é sobre personagens que quero falar. Deixo bem claro que o texto não pretende se manifestar sobre a morte do ator, mas, digamos, a morte do personagem. Sim, porque o lamento me parece muito maior por conta da suposta tristeza que o vácuo deixado pela ausência do papagaio de borracha irá causar na vida dos brasileiros. E na vida de Ana Maria Braga, apresentadora do programa Mais Você, atração matutina da Globo há mais de 20 anos.

 

O tom solene de Luiz Roberto no jogo de domingo, além das manifestações de carinho emitidas por inúmeras pessoas, conhecidas e desconhecidas, me causaram espanto. Afinal de contas, ainda que seja, repito, trágica a morte de Veiga, por mais que eu me esforce, não consigo imaginar o quanto ele fez de amigos e tal para merecer tantas homenagens. Portanto, concluo que estamos diante de um caso de humanização de um personagem de ficção. Um papagaio, que, por sua vez, era contraponto cômico para um programa de variedades femininas, apresentado por uma emissora de TV. As pessoas choram a morte de Louro José. A passagem de Veiga parece acessória a esta perda. E tal situação, deixando Veiga de lado o tempo todo, me lembrou “Vidas Secas”, romance escrito por Graciliano Ramos em 1938. Vocês leram? É uma narrativa fortíssima, tristíssima, desoladora, que mostra uma família que enfrenta as agruras do sertão nordestino. O patriarca, Fabiano, a esposa, Sinhá Vitória, os dois filhos e a Baleia, que é uma cachorrinha que é tratada e narrada como uma pessoa.

 

Não só como uma pessoa, mas como a mais humana das personagens do livro. E, por certa altura do livro, é necessário sacrificá-la, porque ela está com hidrofobia, cabendo a Fabiano a tarefa terrível. Não só para o leitor, mas para os outros personagens, Baleia é muito querida e se contrapõe à desumanidade que lemos. Miséria, condições terríveis de sobrevivência, sonhos deixados pelo caminho, frustrações de todo tipo, estas são as constantes do ambiente em que a família de Fabiano existe. E, para tal, as pessoas acabam perdendo suas qualidades humanas. Só que o ato mais drástico que vemos, o sacrifício da Baleia, é, ao mesmo tempo, o que há de mais humano – privar a cadelinha de sua doença sem cura – e o mais desumano – tirar a vida da única “pessoa” que parece compreender as agruras e as encara com ponderação e consideração. O trecho da morte da Baleia me assombra até hoje e devo ter lido o romance em algum ponto da adolescência, como tarefa imposta pelo meu colégio.

 

Lembrei da Baleia por esses dias.

 

Porque, o que era Louro José? Um boneco, manipulado por um artista? Por mais que haja a lógica dos roteiros e interpretações, ninguém estava se dando conta da existência de uma estrutura artística por trás das aparições dele, até agora. Talvez as pessoas tenham sido injustas, eu, por exemplo, jamais ouvira falar em Tom Veiga. No Louro José, sim, ainda que, repito, eu só tenha visto relances do Mais Você nesses mais de 20 anos, especialmente quando precisei fazer exames médicos, sendo o programa um campeão absoluto de audiência em salas de espera de laboratórios e consultórios médicos. Na sexta, como terei que fazer novas medições de sangue e urina, provavelmente verei Ana Maria Braga, sem som, porque estarei com fones de ouvido. Talvez, mesmo sem ver o programa, o papagaio de borracha fosse mais humano que ela.

 

O que não muda, no entanto, é que precisamos admitir que Louro José, Mais Você, Ana Maria Braga, eram/são péssimos produtos de entretenimento, seja pela pobreza de informação, pelo vazio de atração, pela total ausência de relevância. Porém, a comoção nacional em torno da morte do Louro, me mostra completamente errado nesta avaliação. E devo estar, ainda bem.

 

De resto, as mortes de Louro e Baleia, antropomorfizações, cada uma a seu jeito e lugar, mostram que, sim, estamos sempre deixando nossas características humanas de lado, ou perdendo-as no meio do caminho.

 

Detalhe: a edição do Mais Você de ontem, a primeira sem o Louro, alcançou recorde de audiência.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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