Edgard Scandurra e seus amigos invisíveis

 

 

 

Em 1989 o Ira! experimentava uma pequena queda de popularidade. Após o boom de seus primeiros dois discos – Mudança de Comportamento (1985) e Vivendo e Não Aprendendo (1986), o terceiro trabalho da banda, Psicoacústica (1988) não apresentava o mesmo desempenho, ainda que mostrasse uma banda muito afiada e cheia de ótimas canções, mais tarde valorizadas. Apenas uma faixa fez sucesso radiofônico, a peculiar Receita Pra Se Fazer Um Herói, mais uma daquelas pérolas compostas por Edgard Scandurra em tempos de serviço militar. Núcleo Base, lançada dois anos antes, compartilhava a origem e a falta de vontade em ostentar uma farda como razão para defender o país.

 

Neste hiato criativo de dois anos, o Ira! ficou em segundo plano e, enquanto Nasi e André Jung se aproximavam de sua mais recente paixão – o rap – Edgard Scandurra entrava em estúdio para gravar seu primeiro disco solo. A ideia era aproximar grande parte do que o Ira! significava com uma sonoridade mais setentista, algo que poderia seguir por uma via sem comunicação com as sonoridades punk. É como se Scandurra quisesse ser mais Who que Jam. E o que se ouve ao longo de Amigos Invisíveis é exatamente isso. Algo setentista, concebido num mundo perfeito.

 

Produzido pelo próprio Edgard e contando com o auxílio de Paulo Junqueiro, Amigos Invisíveis tem apenas um músico em ação: o próprio Edgard, que assume o controle de guitarras, bateria, violões, baixo, teclados, percussão, além da voz e dos vocais de apoio, numa surpreendente demonstração de habilidade, sem que isso pareça uma declaração de arrogância ou exibicionismo, até porque a produção cuida para que esta sonoridade seja, de algum modo, coletiva e confere a Amigos Invisíveis uma pluralidade impressionante. Scandurra consegue juntar seus vários backgrounds – Ira!, Smack, Mercenárias – obtidos nas bandas das quais participou e oferece um amplo leque de variações.

 

Além disso, dá vazão a temas legais e ausentes quase sempre das composições do Ira!, como quadrinhos, por exemplo, exaltados aqui em Amor em B.D (B.D é a abreviação de quadrinhos em português de Portugal). O Who, banda seminal para Edgard ostentar uma guitarra com orgulho, é homenageado na versão bela de Our Love Was, uma das mais belas canções de The Who Sell Out, terceiro disco da banda mod inglesa, de 1967. Gritos Na Multidão, sucesso do segundo disco do Ira!, recebe uma versão personalíssima, enquanto outras pequenas pérolas como Minha Mente Ainda É A Mesma, Abraços e Brigas (hit do disco, composto em parceria com a então esposa, Taciana Barros), além da singela Bem Vindo, Daniel, em homenagem ao filho, então recém-nascido.Taciana Barros, ex-Gang 90, participa do disco como compositora em três faixas, além de tocar algumas poucas notas em Abraços e Brigas.

 

Amigos Invisíveis é um disco absolutamente atípico em relação a seu momento histórico. 1989 é um ano que pode marcar uma perda significativa de popularidade do rock nacional, é um tempo estranho, no qual muitas bandas produzirão discos de maturidade, que eram vistos na época como “ruins”, “acomodados” ou “não-rock”. Edgard, sem muita ambição, homenageando suas bandas preferidas, amigos, família e filho, foi longe na experimentação e na busca por algo novo. Conseguiu e ainda tirou a onda de aparecer em programas como o Globo de Ouro, sozinho, empunhando um violão, mandando playback de Abraços e Brigas. Bravo.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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