As Intenções Boas e Infernais de “Never Let Me Down 2018”

Estava reouvindo há pouco a recriação feita em 2018 de “Never Let Me Down”, LP de David Bowie que a maioria considera o pior de toda a discografia dele (há quem goste menos de “Tonight”, de 1984). O álbum teve suas bases instrumentais recriadas depois que Bowie manifestou publicamente o desejo de refazer o disco, retirando dele o que o artista considerava as afecções musicais da década de 1980. Infelizmente, Bowie não estava disponível para dirigir o remake de 2018, que foi realizado por músicos que trabalharam com o artista por alguns anos. Por mais boa vontade que possamos ter com tal remake — que, por natureza, não é desprezível, pois tem a evidente boa intenção de resgatar do inferno um projeto estético fracassado (“Never Let Me Down” vendeu bem quando lançado, ou seja, não foi um fracasso econômico) —, a ausência do principal interessado no resgate é o nó górdio da questão.

 

Acho saudável que músicos decidam revisitar antigos trabalhos fonográficos, mexendo neles a seu bel-prazer — desde que, claro, mantenham ao alcance das mãos e dos ouvidos do público os projetos originais, pois reescrever a história é feio —, mas remodelar um álbum sem a presença física de seu autor é um revés que não pode ser desconsiderado (os problemáticos álbuns póstumos de Michael Jackson estão aí para provar o que digo). Bowie é largamente reconhecido como um autor pop que tinha controle sobre como seriam os seus álbuns (se ele abdicou deste controle eventualmente foi por razões pessoais), então a edição original de “Never Let Me Down” foi fruto direto da mente e do coração do artista.

 

Nas décadas seguintes ao lançamento de “Never Let Me Down”, Bowie falou muito mal deste projeto em entrevistas: ele o considerava o pior momento de sua carreira fonográfica. Não podemos dizer com certeza que a opinião de Bowie sobre “Never Let Me Down” foi moldada exclusivamente pelas unânimes críticas negativas que o álbum recebeu à época do lançamento dele, mas o artista, que quase sempre fora entusiasticamente apoiado pelos críticos profissionais (sobretudo na década de 1970), certamente sentiu o cutuco. David Bowie era muito ciente do que se dizia sobre ele na mídia e, mesmo com o sucesso comercial do disco, deve ter ficado bem incomodado com o fato de que suas credenciais artísticas estavam sendo duramente questionadas em escala industrial. Foi o sinal para que ele preparasse um novo programa estético, uma nova imagem, uma nova guinada na carreira.

 

A “versão 2018” de “Never Let Me Down”, publicada na luxuosa caixa de discos “Loving the Alien (1983-1988)”, é releitura alternativa do repertório de 1987 de David Bowie que pode agradar aos haters do álbum primordial, mas parece um esforço insincero — por causa da ausência do autor, morto em 2016 — e desnecessário — por causa do frustrante resultado final, que não oferece a tão esperada redenção artística do disco. A tentativa de fazer as canções de 1987 soarem mais “sombrias” parece atender mais aos cacoetes estéticos e morais das duas décadas finais do século XX e das duas primeiras do século XXI, época em que a rudeza e o cinismo foram definitivamente entronizados como guias de comportamento individual e coletivo, do que às próprias canções.

 

Como sempre, Reeves Gabrels, regular colaborador de Bowie no final dos anos 1980 e nos anos 1990, não sabe quando calar sua guitarra, fato que pode enervar o ouvinte que não suporta este tipo de exagero. Ainda que o time composto por Gabrels, David Torn (guitarra), Sterling Campbell (bateria), Tim Lefebvre (baixo) e Mario J. McNulty (produção) tenha recebido autorização expressa de Bowie para recriar “Never Let Me Down”, nada garante que as decisões tomadas por esta equipe seriam totalmente aprovadas pelo principal interessado no sucesso do remake.

 

Acredito que “Never Let Me Down 2018” teria melhores oportunidades de redenção estética se tivesse sido remixado a partir do material sonoro original e sob a supervisão do autor em seus últimos anos de vida e não recriado sem a presença dele, pois as canções escritas para o álbum estão essencialmente imbricadas com a sonoridade da época em que foram feitas, por mais que David Bowie discordasse disso. Havia, sim, um desejo de Bowie de reescrever a própria história fonográfica, revelado sem rodeios na supressão da faixa “Too Dizzy” em edições de “Never Let Me Down” posteriores a 1995. As canções que Bowie escreveu nos anos 1980 representam o espírito daquela época para o bem e para o mal e não merecem receber tratamento preparado por um doutor Frankenstein genérico. Na avaliação final de “Never Let Me Down 2018”, podemos usar sem culpa o velho adágio: “De boas intenções o inferno está cheio”.

Original:

Versão 2018: CD 5

Zeca Azevedo

Zeca Azevedo é. Por enquanto.

2 thoughts on “As Intenções Boas e Infernais de “Never Let Me Down 2018”

  • 4 de setembro de 2023 em 15:14
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    Comprei o disco na semana do lançamento. Confesso que gostei. Ao longo dos anos, Bowie jurou detestá-lo e sequer participou da mixagem final, algo impensável para um artista absolutamente centralizador como era. Curioso é que em uma das entrevistas de divulgação disse que naquele momento em que completava 40 anos (nasceu em 1947), era o seu segundo melhor momento da carreira, inferior apenas ao anos com Brian Eno.

    A faixa-título é muito bacana, rendeu um clip classudo e gosto também de “Time Will Crawl” e a cover de “Bang Bang”, de Iggy Pop. O disco vale pela presença do guitarrista Peter Frampton, amigo de longa data (Bowie foi aluno do pai de Peter), que agradeceu o convite, em um momento de total baixa na carreira e disse que o convite para gravar o álbum resgatou sua credibilidade. E este é um dos defeitos do lançamento de 2018, que achei horroroso: trocar os riffs elegantes de Frampton pela sujeira do Gabrels.

    O rap de Mickey Rourke em “Shining Star” é uma bobagem, mas era reflexo da época. “Glass Spider” rendeu um tour de mesmo nome, onde Bowie contratou os dançarinos do La La Human Steps para as coreografias, em uma tour francamente pouco inspirada.

    No mais, é uma bobagem regravar um disco, seja ele bom ou ruim. Iggy Pop cometeu o mesmo erro ao remixar por conta própria Raw Power e soterrando todas as nuances de Bowie, com uma montanha de microfonia. Felizmente, pouca gente lembra dessa prensagem, embora eu a tenha.

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  • 2 de outubro de 2020 em 08:22
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    Gosto do disco original. Achei essa nova versão um grande flop. Desnecessária

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