Ainda Estou Aqui – O filme definitivo sobre a ditadura brasileira
“Ainda Estou Aqui” é o filme definitivo sobre a ditadura civil-militar brasileira. Digo isso sem medo de exagerar, mesmo com obras tão importantes como “Eles Não Usam Black-Tie”, “Pra Frente Brasil”, “Ação Entre Amigos”, “O Dia Que Meus Pais Saíram de Férias” ou “O Dia Que Durou 21 Anos”, este último, um documentário, brilhantemente realizadas ao longo do tempo. O filme de Walter Salles consegue aliar toda a carga dramática do momento vivido na época com a informação histórica e historiográfica, sem abrir mão do rigor da direção e da própria concepção da obra, contando, ainda por cima, com um elenco muito dedicado e uma performance definitiva e definidora de Fernanda Torres. É um trabalho primoroso, quase um docudrama da vida da família Paiva, que viu o ex-deputado e engenheiro Rubens Paiva ser levado de casa para depor sem que jamais retornasse. O próprio Salles vem declarando em entrevistas sobre a importância da valorização da memória como ferramenta de construção da própria visão da história e como antídoto para o esquecimento e a conivência que teimam em existir no pais. E no mundo.
A história da família Paiva é relativamente conhecida. Rubens Paiva, vivido com muita graça por Selton Mellon, era um deputado federal, eleito pelo PTB e integrante do governo João Goulart, deposto em 1964 pelo golpe civil-militar. A partir daí, Rubens foi cassado e exilou-se na Iugoslávia e, posteriormente, na França, posteriormente voltando ao Brasil para ficar perto da família e ajudar aos muitos clandestinos e perseguidos pelo regime. Para isso retomou o trabalho como engenheiro e mudou-se com os filhos e a mulher, Eunice, para o Rio de Janeiro. Ali, de frente para o mar do Leblon, a família Paiva viveu uma vida em suspenso, entre a beleza do lugar, com a rotina de classe média na Zona Sul carioca e a tensão permanente da espreita dos agentes da repressão. No filme, Eunice, magistralmente interpretada por Fernanda Torres, não sabe das atividades do marido, mas desconfia que há algo estranho acontecendo. Até que um dia, os agentes batem em sua porta e levam Rubens “para averiguações”. A partir daí, o marido jamais retornou para casa, num mistério que durou décadas para ser resolvido.
A luta de Eunice se divide entre vários campos. Precisa dar sustento emocional para os cinco filhos – Vera, Eliana, Ana Lucia, Maria Beatriz e Marcelo – não deixando que eles percebam a totalidade do que está acontecendo. Precisa se recompor e se reinventar como mãe “solteira”, lidando com as despesas da casa e vendo, aos poucos, todos os referenciais de estabilidade – emocional, financeira, estrutural – ruírem diante do prolongamento da ausência de Rubens e, além disso, dosar a sua indignação com a permanência do regime civil-militar no poder, num período que só se encerraria dezesseis anos depois, com a eleição de Tancredo Neves pelo colégio eleitoral. O filme mescla brilhantemente a carga informativa, os referenciais culturais-visuais da época e não poupa o espectador de uma visão do horror da repressão em uma sequência terrível em que Eunice é também levada para depor, junto com sua filha, Eliana, fato que realmente aconteceu. O pior que Salles mostra é como as pessoas estavam a mercê do sistema, visto que estava vigente no AI-5, conjunto de medidas que, entre outras coisas, suspendia o direito a habeas-corpus e concedia o direito de diligências policiais sem mandado de busca e apreensão.
“Ainda Estou Aqui” é um dos raríssimos filmes nacionais sem erros de referência e pesquisa de exteriores. Há uma profusão de automóveis da época, dados de filmes, discos, livros, posters e, se não fosse por um selo da gravadora Som Livre aparecendo numa sequência rápida, ele seria absolutamente perfeito em toda a sua pesquisa. Além disso, a direção de Walter Salles é uma aula de contenção e resignação. Ainda que mostre a luta de Eunice e sua recusa em ceder às circunstâncias, ele também mostra como era quase impossível resistir à ação do governo militar e como ele estava em toda parte, mesmo que beneficiado por essas viradas de mesa no campo judicial e institucional. Salles não poupa o espectador de toda a angústia e terror que surgem da falta de informações e de como devia ser terrível viver num lugar e num tempo nos quais as instituições não estavam funcionando bem.
É preciso falar separadamente de Fernanda Torres. Sua atuação aqui é, não só, a melhor de toda a sua carreira, como uma das mais impactantes que já pude ver. Talvez essa impressão seja acentuada porque sou um filho deste período terrível da nossa história, tendo nascido poucos meses antes dos fatos narrados no filme, em julho de 1970. Só mais velho pude perceber o quanto era complicado viver naquele tempo, mesmo numa família bem diferente dos Paiva, visto que meu avô era um coronel da Aeronáutica, irmão de vários generais do Exército, que foram ativos na repressão. Talvez por isso, o silêncio e as conversas interrompidas com minha chegada nos ambientes tenham sido tão frequentes ao longo da minha infância e minhas memórias borradas pelo tempo ganharam nitidez com a atuação de Fernanda. Ela foi além das técnicas de interpretação e incorporou o espírito do tempo, a sutileza, a tristeza diante de um país que deixou de existir por conta da violência, fato que deixou muitas pessoas órfãs de sua terra, seu presente e seu futuro. De alguma forma, ela e Walter Salles, além do restante do elenco, conseguem capturar essa sensação, essa tristeza infinita.
Baseado no livro de mesmo nome de Marcelo Rubens Paiva, testemunha ocular de todos os fatos, junto com sua família, “Ainda Estou Aqui” é, antes de mais nada, um filme para a nossa vida. Deveria ser passado em todos os espaços públicos como uma ferramenta contundente e fortíssima de memória. Se for considerado para disputar prêmios internacionais e, porventura, ganhe um ou outro, será ótimo. Mas a maior premiação será, certamente, o reconhecimento dentro do Brasil, mostrando um princípio básico da vida social: é necessário punir os abusos e encarcerar os algozes. Do contrário, nunca será possível evitar que eles aconteçam sucessivamente ao longo do tempo.
Bravo. Todo mundo deve ver.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.