Primal Scream volta com álbum dançante e político
Primal Scream – Come Ahead
64′, 11 faixas
(BMG)
As pessoas que estão exultantes com o retorno do Oasis aos palcos deveriam, pra ontem, prestar atenção em quem nunca foi embora e seguiu fazendo música. O Primal Scream é um dos melhores exemplos de banda genial resistente à ação do tempo. Ainda que tenha feito sucesso mundial no início dos anos 1990, mais precisamente, com “Screamadelica” (1991), o Primal é dos anos 1980, nascido na segunda metade daquela década, liderado por um sujeito que havia tocado bateria no Jesus And Mary Chain: Bobby Gillespie. Responsável pelas mais geniais fusões de música eletrônica, rock, acid e dub, o Primal Scream já tem assegurado seu lugar no hall das melhores formações britânicas (são escoceses) por discos como “Vanishing Point” (1997), seu contraponto dub genial “Echo Dek” (1997) e o supremo “XTRMNTR” (2000). Com uma carreira contínua, ainda que errática nos últimos anos, Bobby e sua galera estão de volta com este “Come Ahead”, um de seus discos mais consistentes, engajados e dançantes, mas que, ao mesmo tempo, traz uma carga de questionamentos pessoais e noção de que a morte está cada vez mais próxima. Enquanto reflete sobre tudo isso, Gillespie oferece ao ouvinte vários grooves aerodinâmicos, derivados do funk, do acid rock e da própria disco music.
A presença de um produtor como David Holmes no estúdio viabiliza essa abrangência e proporciona essa fluência dançante. Holmes é um mestre da música eletrônica dos anos 1990, assinou produções sensacionais em que passado e presente apontavam para o futuro, remixando de U2 e Bjork a Tricky e Noel Gallagher, bem como a trilha sonora do ótimo “Oceans’ Eleven” e lançando álbuns maravilhosos, dentro os quais o segundo, “Let’s Get Killed”, de 1997, é o ponto mais alto. Sendo assim, Holmes tem a manha para fazer o Primal Scream soar moderníssimo e urgente e o resultado é uma cruza invocadíssima de grooves que podem lembrar tanto o Stone Roses de 1989 como algumas faixas funk’n’soul dos anos 1970 e 1980, tudo devidamente temperado pela psicodelia sessentista e a devoção aos Rolling Stones, elementos-chave para decodificar a mensagem primalscreamiana. De alguma forma, tudo isso está aqui, com a adição de um elemento novo – a preocupação com o passar do tempo, que já vem estampada na capa, com uma foto do início dos anos 1960 de Bobby Gillespie Sr, um sindicalista em seu tempo, mais parecendo um poeta beat. Como eu disse, está tudo aqui.
Falando em “tudo aqui”, convém lembrar de outro importante nome na arquitetura sonora do PS: o guitarrista Andrew Innes, presente desde 1987, segue como um integrante fixo da banda, tão consisetente quanto o próprio Bobby. Essa proximidade com o funk e até com a disco music tem na solidez guitarreira de Innes uma referência forte. Ele é capaz de suingar sem medo e revestir de tinturas psicodélicas quando é necessário, cobrindo assim um território estético bastante amplo. Mas a estrela aqui é a fúria anti-capitalista de Bobby, sempre um sujeito atento ao mundo e às condições de existência, mas usar versos como “A rope made of gold, to hang ourselves on” (em “Innocent Money”) ou frases como “Se você nasceu na classe trabalhadora, sempre estará na classe trabalhadora”, na entrevista dada à NME recentemente, é algo novidadeiro até para alguém tão consciente.
Além de tudo isso, a safra de composições de Bobby é extremamente bacana em “Come Ahead”. Os dois singles, “Ready To Go Home” e “Love Insurrection” foram muito bem escolhidos para dar a ideia do que estava por vir. A primeira é uma bem urdida trama de corais gospel que são engolfados por um turbilhão neodisco irresistível, com ótima linha de baixo e balanço irresistível. A segunda tem mais a ver com o padrão que o próprio Primal Scream forjou com seu clássico “Movin’ On Up”, há mais de trinta anos, aqui devidamente atualizado. Em ambas as canções, Bobby fala sobre a mortalidade e a necessidade do amor/fraternidade como meio de existência. Mas tudo fica melhor quando chega a sensacional “Innocent Money”, que também segue pelo terreno funk, com arranjo de cordas que homenageia o philly sound e groove matador. Já em “Circus Of Life”, a percussão e os efeitos oferecem uma canção que tem andamento que lembra muito “Fool’s Gold”, o maior sucesso do Stone Roses quando surgiu. Em “Deep Dark Waters” há um formato mais pop e tecladeiro, com melodia bela, enquanto “The Centre Cannot Hold” atende pelo crossover eletrônico e acústico, com boa dinâmica. Fechando o álbum, “Settlers Blues” com mais de nove minutos sobre a opressão imperialista europeia ao longo dos tempos.
“Come Ahead” é uma porrada bem dada. Merece – e deve – ser ouvido com fones para que seja possível notar toda a arquitetura sonora que David Holmes ergueu. Suas canções são pequenos caleidoscópios, cheios de detalhes. E as letras são ótimas. Não perca.
Ouça primeiro: “Ready To Go Home”, “Love Insurrection”, “Innocent Money”, “Circus Of Life”, “Deep Dark Waters”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.