Afinal, o que acontece com o U2?
Recebi com receio a notícia do lançamento, em 17 de março próximo, de “Songs Of Surrender”, um compêndio de autor-releituras feito pelo U2 a partir de canções emblemáticas de sua carreira. O anúncio, feito no dia 11 de janeiro, diz o seguinte: “‘Songs Of Surrender’, produzido e com curadoria de The Edge, mostra o U2 revisitando algumas de suas mais festejadas canções ao longo de 40 anos de carreira, incluindo “With Or Without You,” “One,” “Beautiful Day,” “Sunday Bloody Sunday” e “Invisible”, resultando numa completa reimaginação musical, com novas gravações para cada faixa, novos arranjos e, em alguns casos, novas letras”. Dá medo, não dá? Claro que dá, afinal de contas, é bom lembrar que o U2 já vendeu 170 milhões de discos, ganhou 22 Grammys e uma série de outros prêmios, incluindo a Medalha de Honra Pablo Neruda. Não é qualquer bandinha.
Digo, “medo”, porque, ora bolas, eu costumava ser um fã do U2. Aquele tipo de pessoa que ficou na fila para comprar as edições numeradas de “The Best Of U2 – vol.1” e “Pop” na velha Gramofone do Shopping da Gávea … à meia-noite. Que catava remixes e edições raras dos singles no início dos anos 1990. Que passou a gostar de “Bad” porque a menina inatingível do colégio a amava e, por fim – ou pelo começo – ficou curioso para saber o que era o U2 na camisa que o amigo de sala usava lá por … 1984. Sim, eu era esse tipo de admirador. Com o tempo, constatei duas coisas: que o U2 dos anos 1990, da música eletrônica, da ZooTV, de MacPhisto e do clipe de “Numb” era muito melhor que o dos anos 1980. E que a banda parou de produzir música relevante a partir de, vejamos, 2004. De lá para cá, meu interesse pelo U2 se resume aos relançamentos dos álbuns noventistas, entre os quais o malfadado “Pop”, do qual passei a gostar bastante. E só. O último suspiro de interesse por material inédito foi com “How To Dismantle An Atomic Bomb”. O que veio depois – “No Line On The Horizon” (2009), “Songs Of Innoncence” (2014) e “Songs Of Experience” (2017) – não me interessou minimamente.
São, portanto, 19 anos de distância, de relação estremecida, a do U2 comigo. A vida segue, novas e incríveis bandas e artistas surgem todos os dias, bem como velhos e veteranos voltam com novas propostas e dão prosseguimento às suas carreiras, mas, o que o quarteto irlandês fez nesse tempo? Além dos discos lançados e dos DVDs ao vivo, sempre bombásticos e bem feitos, The Edge, Bono, Larry Mullen Jr e Adam Clayton pouco apareceram, a não ser por motivos involuntários. O baterista Mullen já disse que, caso a banda faça uma turnê mundial, ele estará fora. Após anos de serviços prestados e, segundo ele, várias contusões no corpo, Larry parece cansado e de saco cheio. Bono, por sua vez, escreveu uma autobiografia chamada “Surrender: 40 Músicas, Uma História”, sobre a qual fará uma residência no Beacon Theatre, em Nova York, em fevereiro. Antes disso, a gente lembra, o endosso total ao líder ucraniano Zelensky, feito em declaração que o comparava a São Patrício através de um poema? A gente até falou disso na época (leia aqui).
A banda pisou na bola artisticamente algumas vezes. O episódio da venda digital forçada de “Songs Of Innocence”, em 2014, através de IPods da companhia americana nunca foi bem explicado e, para uma banda que sempre incorporou um viés, digamos, ético, em suas ações e posturas, se valer de um expediente como este nunca caiu bem. A participação na trilha sonora de “Sing 2”, com uma canção inédita, a fraquíssima “Your Song Saved My Life”, a cover sem sal para o clássico “Get It On (Bang A Gong)” num tributo ao T.Rex em 2020, tudo aponta para um esgotamento criativo considerável (definitivo?). Se for este o caso, não há nada errado nisso. Vários artistas e bandas vivem situação semelhante, mas, se você usar a minha régua de valor, já são dezenove anos sem algo interessante para contar e, sim, isso é muito tempo. Por outro lado, também não há nada errado em encerrar uma carreira vitoriosa se não há nada para ser dito, algo que o REM – uma banda tão relevante quanto o U2 – fez.
Mas não. Teremos então estas 40 canções relançadas, revistas, reimaginadas pelo U2 de hoje – careta, bundão, acomodado, sem criatividade. Certamente isso irá matar grande parte da magia dos originais, que, além de captarem a banda em outros tempos, captam também o momento em que foram compostos e gravados. Se um artista tem o direito de refazer e relançar sua obra – e é claro que o tem – até que ponto vai o estrago possível que tal movimento pode causar para os originais? Abre-se um espaço para novas interpretações ao preço do fechamento dos espaços que haviam antes? É uma questão, digamos, ética, para novamente usar esta palavra. O fato é que a banda já anunciou o primeiro single desta empreitada, a reimaginação de “Pride (In The Name Of Love)”, lançada originalmente em 1984 e que, possivelmente, puxou o U2 para o sucesso mundial. Ela está no grupo de dez faixas pinçadas por The Edge para o lançamento de “Songs Of Surrender”, no qual cada integrante terá a sua dezena de escolhidos. Veja o tracklist abaixo, separado por membro.
U2, ‘Songs of Surrender’
Side 1 – The Edge
1. One
2. Where The Streets Have No Name
3. Stories For Boys
4. 11 O’Clock Tick Tock
5. Out Of Control
6. Beautiful Day
7. Bad
8. Every Breaking Wave
9. Walk On (Ukraine)
10. Pride (In The Name Of Love)
Side 2 – Larry
1. Who’s Gonna Ride Your Wild Horses
2. Get Out Of Your Own Way
3. Stuck In A Moment You Can’t Get Out Of
4. Red Hill Mining Town
5. Ordinary Love
6. Sometimes You Can’t Make It On Your Own
7. Invisible
8. Dirty Day
9. The Miracle Of Joey Ramone
10. City Of Blinding Lights
Side 3 – Adam
1. Vertigo
2. I Still Haven’t Found What I’m Looking For
3. Electrical Storm
4. The Fly
5. If God Will Send His Angels
6. Desire
7. Until The End Of The World
8. Song For Someone
9. All I Want Is You
10. Peace On Earth
Side 4 – Bono
1. With Or Without You
2. Stay
3. Sunday Bloody Sunday
4. Lights Of Home
5. Cedarwood Road
6. I Will Follow
7. Two Hearts Beat As One
8. Miracle Drug
9. The Little Things That Give You Away
10. 40
Estão presentes grandes clássicos do U2 nessa lista, quase todos os sucessos mais conhecidos. A nova versão de “Pride”, lamentavelmente, é muito ruim. Toda a energia do original, as guitarras, o andamento marcial, a voz de Bono nas alturas, o grito desesperado contra a injustiça pela morte de Martin Luther King Jr, tudo se foi nesta nova gravação. Se transformou numa cover, só que feita pelo criador. E esta é a provável vocação de “Songs Of Surrender”, um disco de autocovers. Se estivermos errando neste prognóstico, admitiremos sem qualquer embaraço a nossa imprecisão no julgamento prévio. Mas, infelizmente, parece que estamos acertando no alvo.
Voltaremos para resenhar o álbum. Fiquem atentos. Ou não.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.
Fui ouvir com uma certa desconfiança, confesso. Mas ao final tive a certeza de praticamente nada ali prestou, me pareceram releituras feitas por um crítico musical daqueles bem rabugentos e sem sal.
Eu tenho saudade da energia de coisas como “Gloria”, “Two hearts beating as one…” então eu realmente detestei esse lançamento.
Infelizmente parece isso mesmo, perdeu o time de parar