Madonna revive 40 anos de carreira no Rio

 

 

Quando Madonna encerrou sua apresentação em Copacabana, já adentrando a madrugada de domingo, dia 5 de maio, tive certeza absoluta de que os quase dois milhões de presentes eram privilegiados. Por mais de duas horas, essa gente foi testemunha de um espetáculo que foi muito além do “show de música”, no qual a artista revisitou sua carreira que já ultrapassa quarenta anos. E, como boa inovadora que é, Madonna achou esse formato, meio enredo de escola de samba, meio ópera, meio Broadway, meio qualquer coisa, para revelar e recordar fatos, músicas, pessoas, momentos. E o mais interessante: fez isso sem parecer nostálgica ou saudosa de algo. Em meio ao espetáculo de dança, efeitos, música e coreografias milimetricamente ensaiadas, ela solta um “o que tornou minha carreira tão desafiadora foi ter permanecido”. É uma declaração que encampa e peita o preconceito em todas as suas manifestações e, automaticamente, insere esses quase dois milhões de pessoas no mesmo barco. O seu.

 

Madonna atrasou cerca de cinquenta minutos. Quando entrou no palco, apresentada pelo mestre de cerimônias Bob, The Drag Queen, qualquer incômodo por isso se desfez em questão de segundos. Ao som de “Nothing Really Matters”, ela iniciou o percurso pessoal, tendo a Nova York do fim dos anos 1970 como cenário. Foi onde chegou, vinda de seu Michigan natal, com pouco mais de trinta dólares na carteira. Deu show em lugares imundos, foi assediada no mitológico CBGB’s no qual pediram para ela tirar a blusa e “mostrar os peitos”. E, sendo criada nesse underground novaiorquino pré-yuppie, Madonna adentrou os anos 1980 acolhida pela comunidade LGBTQIA+, que a projetou e a acompanhou por toda a carreira. Ela nunca esqueceu esse apoio/acolhida, defendendo a causa por todo esse tempo, empoderando mulheres, gays e oprimidos em geral, e, claro sentindo o impacto de perdas pessoais ao longo do tempo. Em “Live To Tell”, Madonna relembra vários mortos pela AIDS, inserindo ali, Renato Russo e Cazuza.

 

Até ali, Madonna escolheu versões remixadas e alteradas de “Everybody”, “Into The Groove”, “Burning Up” (que ela tocou ao vivo, com uma guitarra), “Open Your Heart” e “Holiday”, num blocão temático invejável pela coreografia afiada e pela rapidez com que as canções iam mudando e se fundindo. Depois da homenagem aos amigos mortos, ela entabulou um circo sinistro e sensacional para cantar uma sequência que começou com “Like A Prayer”, devidamente misturada com “Unholy”, de Sam Smith, o que aumentou ainda mais o potencial anti-religião da coisa. Em meio a um carrossel em que bailarinos e bailarinas giravam seminus, ela foi, veio e voltou, abrindo espaço para a sequência com “Erotica”, que teve lugar num ringue de boxe estilizado. Este módulo ainda teria momentos extremos com “Justify My Love” e “Hung Up”, com direito a beijaço, siriricaço e tudo mais a que Madonna tem direito.

 

“Bad Girl”, segundo consta, foi resgatada para esta turnê a pedido dos fãs e não era executada desde 1993, quando fez parte da “The Girlie Show”, a primeira vinda de Madonna ao Brasil. A canção surgiu com participação de uma das filhas da artista, Mercy James, no piano e antecedeu talvez o grande momento da noite, o chamado “Act IV”, que trazia uma bombástica apresentação de “Vogue”, devidamente apresentada por Bob The Drag Queen e que contou com participação de outra filha, Estere, que emulou um DJ set, no qual a canção estava incluída e que servia de trilha para um desfile de talentos dos bailarinos e bailarinas, no qual Madonna e a convidada, Anitta, davam notas enquanto eram, digamos, convencidas pelos dançarinos e dançarinas a aumentar o valor. Se tudo parecia devidamente abalado pela onda de música e liberdade que o espetáculo oferecia, ainda teve momentos sensacionais com “Die Another Day”, canção que foi tema do filme de mesmo nome, em 2001, e um remix étnico-musical em que “Express Yourself” (em versão acústica), “La Isla Bonita” e “Music” (que foi tocada apenas neste show do Rio) convergissem para uma batucada em que crianças de várias escolas de samba surgiram ao lado do palco. A outra convidada, Pablo Vittar, apareceu para dançar a canção com Madonna em mais coreografias insinuantes e sensacionais.

 

Com versões turbinadas de “Ray Of Light” e “Rain”, o show se encaminhou para o final apoteótico, no qual Madonna homenageou aquele com quem dividiu o planeta nos anos 1980, Michael Jackson. O telão mostrou as silhuetas da versão 1985 da cantora e de Michael pós-“Thriller”, enquanto as imensas caixas de som fundiam as batidas de “Billie Jean” e “Like A Virgin”, que, em 1984, duelaram constantemente nas paradas de sucesso do mundo. Após uma enxuta “Bitch, I’m Madonna”, ela se despediu com um “obrigado” e sumiu no palco. Seria pouco se Madonna já não tivesse agradecido aos cariocas, ao Rio e dito que a cidade tem mar, tem montanha e tem Jesus, tudo ao mesmo tempo, no mesmo lugar.

 

Ter um show destes no Rio em 2024 é um milagre. Que sirve para que espantemos toda a caretice e burrice que insistem em pairar sobre a cidade. Madonna, obrigado.

 

Setlist:

Act I
Nothing Really Matters
Everybody
Into the Groove
Burning Up
Open Your Heart
Holiday

Act II
Live to Tell
Like a Prayer

Act III
Erotica
Justify My Love
Hung Up
Bad Girl

Act IV
Vogue (with Anitta)
Human Nature
Crazy for You

Act V
The Beast Within
Die Another Day
Don’t Tell Me
This Little Light of Mine
Express Yourself
La Isla Bonita
Music (with Pabllo Vittar)

Act VI
Bedtime Story
Ray of Light
Rain

Act VII
Billie Jean / Like a Virgin
Bitch I’m Madonna
Celebration

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

One thought on “Madonna revive 40 anos de carreira no Rio

  • 5 de maio de 2024 em 21:34
    Permalink

    Teve homenagem ao Prince também!!!
    Madonna não me pareceu tão bem assim… Joelho detonado, um certo ar de dessincronia, movimentos limitados, sei lá! Eu vi pela TV.

    Resposta

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *