1917 – Microhistória da Primeira Guerra Mundial

 

 

O diretor inglês Sam Mendes (“Beleza Americana”, “Skyfall”) deve ter lido o historiador italiano Carlo Ginzburg. Seu novo longa, “1917”, é uma obra belíssima, fortíssima, baseada em histórias que seu avô, o cabo Harold Mendes, contava sobre a guerra. A partir delas, Sam escreveu um roteiro sobre uma missão durante a parte final do conflito, quando os alemães já estavam em retirada, e, a partir dela, é possível entender como era a vida dos soldados, a rotina do front, as demonstrações de lealdade e a dureza da guerra, que costuma ser relegada a um segundo plano, se comparada à Segunda Guerra Mundial, que viria apenas 21 anos depois.

 

Em termos cinematográficos, “1917” é impressionante, não espanta o número massivo de indicações e premiações que o longa tem recebido. O que Mendes consegue na tela é uma demonstração de refinamento técnico como poucas vezes se viu no cinema recente. Em dois blocos de cerca de uma hora, ele filma a missão dada aos cabos Schofield (George MacKay) e Blake (Dean-Charles Chapman), sem cortes. São dois enormes, intrincados e acachapantes sequências em que os soldados caminham por campos abertos, espaços pequenos, altos, baixos, sob a água e a câmera não desgruda deles. Como Sam Mendes fez isso? O resultado é desbundante, para dizer o mínimo. A partir disso, fotografia e montagem também ficam impressionantes, dando a impressão que o espectador está logo atrás ou logo na frente dos soldados, vivenciando tudo aquilo.

 

A narrativa de “1917” é semelhante à de “O Resgate do Soldado Ryan”, quando a guerra é transportada para o plano pessoal/individual, enfatizando o drama (des)humano que o conflito impõe a quem participa dele. Os soldados surgem inseridos no contexto de horror, que vai se tornando cotidiano, naturalizado e assimilado. A missão que Schofield e Black recebem é a de chegar a tempo de evitar um ataque de um pelotão inglês a posições alemãs. Segundo reconhecimento aéreo – uma inovação daqueles tempos – os ingleses entrarão numa cilada e serão dizimados. Para isso, os dois precisam atravessar a linha inimiga e penetrar em território francês ocupado. As informações são conflitantes, uma vez que dão conta de que o inimigo está em retirada, mas é preciso convencer quem já está no front, ou seja, algo que não é nada fácil.

 

Enquanto caminham para o objetivo, os dois soldados vão falando sobre amenidades de suas vidas dentro e fora da guerra, aguçando ainda mais a sensação de que eles estão inseridos naquele inferno e não há nada a fazer, a não ser cumprir as ordens. O resultado é tristemente belo.

 

O historiador italiano Carlo Ginzburg é um dos grandes nomes da ciência no século 20, especialmente por ter apontado um novo caminho para a pesquisa historiográfica. Ao escrever uma obra como “O Queijo e os Vermes”, publicada em 1976, Ginzburg apresenta ao leitor um plano de análise que abre mão das grandes narrativas oficiais. Neste livro, ele mostra a vida e as impressões de um moleiro chamado Mennochio, que foi perseguido pela Inquisição no século 17. Ao levar a narrativa para o plano de um processo do tribunal católico, Ginzburg conseguiu mostrar detalhes comuns e vários outros, mostrando novas observações e peculiaridades. O que Sam Mendes consegue aqui, mostrando a missão de dois soldados britânicos em abril de 1917, é uma visão ampla do horror comum a todos os participantes do conflito, a imundície, a tristeza e a falta de sentido numa guerra mundial travada em lugares nos quais os protagonistas jamais estiveram ou estarão, depois que tudo terminar e o quanto podem perder ao longo deste decorrer.

 

“1917” é mais humano e possível que “Soldado Ryan” e muito, muito mais real também. Não deixe de ver.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *