Vitor Ramil ressurge em parceria com Paulo Leminski

 

 

 

 

Vitor Ramil – Mantra Concreto
43′, 15 faixas
(Satolep/Tratore)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

 

Quem conhece a obra de Vitor Ramil sabe que se trata de um moderno mestre da canção brasileira. O termo “moderno” aqui é utilizado com aquele sentido perene e ideal que nomeia algo que faz parte de um “futuro que chegou”, sempre pensando no porvir como um tempo finalmente bom. Explico: Vitor e sua obra borram as fronteiras entre erudito e popular, entre esclarecimento e informação, entre conhecimento e cotidiano. Ele teima em achar que é possível pensar em uma forma de música de contornos pop (ulares) que tenha complexidade suficiente para que o público se encante por ela. É o avesso do que faz a maioria esmagadora da música pop hoje, na qual o ouvinte é bombardeado pelo cotidiano mais banalizado e esvaziado possível, da forma mais superficial disponível, com a moldura musical mais óbvia. Vitor não pensa assim, ele é inimigo declarado do óbvio. Ele tem cuidados estéticos que vão além da facilidade do mecanicismo dos computadores e softwares, mas usa tais engenhocas para lograr seu êxito. Pensa em arranjos com violões de aço dobrados, mas pontua tudo com samples e synth bass, tudo tocado a distância, com programações sutis e delicadas. E pensa, sobretudo agora, em apresentar versões musicadas de poemas de Paulo Leminski, mesmo sabendo que, hoje em dia, a compreensão desses escritos pode ser cada vez mais rara entre as pessoas. Não importa, Vitor faz tudo isso parecer natural porque pensa dessa forma. “Mantra Moderno” é o resultado de um encantamento antigo com a obra do poeta paranaense, mas que acirrou-se na pandemia.

 

Vitor conta musicou treze poemas de Leminski em meio à pandemia da covid-19 e logo se deu conta de que tinha uma material poderoso em mãos. Juntou à produção recente outras duas incursões mais antigas na poesia do curitibano – “O velho Leon e Natalia em Coyacán”, que ele registrara em “Tambong” (2001) e “Uma Carta, uma brasa através”, gravada por Juliana Cortes em 2016 e enxergou o conjunto de quinze poemas musicados pronto para vir a público. Recrutou um time capaz de dar forma aos arranjos que pensou – os co-produtores e músicos de base Alexandre Fonseca e Edu Martins, um no Rio de Janeiro, outro em Porto Alegre, com Vitor em sua base em Pelotas. Além deles convidou André Gomes (sitar, guitarra), Carlos Moscardini (violão), Santiago Vazquez (kalimba) e Toninho Horta (guitarra), que estavam, respectivamente, em São Paulo, Argentina, Uruguai e Belo Horizonte. Vagner Cunha (violino), José Milton Vieira (trombone) e Pablo Schinke (violoncelo) estavam em Porto Alegre.

 

O nome “Mantra Concreto” vem de um poema cujo título foi dado pelo próprio Vitor, visto que muitos poemas de Leminski não possuem título. Os versos deste poema outrora sem nome remetiam à poesia concreta, uma das grandes influências do poeta. Ele conta que: “Seu tema, de prece e pressa, com pinceladas entre o mítico e o espiritual, me fez pensar em mantras e no caráter mântrico de muitas das minhas composições, que ganhavam concretude com aquela poesia clara e rigorosa. A expressão “mantra concreto” passou então a representar o conjunto das canções e a sugerir os caminhos para a concepção do álbum como um todo: arranjos, gravações, mixagem, masterização e capa.”. Além da inspiração em Leminski, o álbum também traz, em sua capa, uma influência que remete ao construtivismo e ao futurismo russos, mas que, como é a lógica de Vitor, também dialoga com a cultura pop. O designer Felipe Taborda sugeriu uma paródia do clássico cartaz de Aleksandr Rodchenko e Vladimir Maiakóvski. O cartaz original, presente no encarte, oferece livros de “todos os campos do conhecimento” à classe trabalhadora. Leminski e Trotsky certamente iam gostar. Como ícone pop, a peça de Rodchenko e Maiakóvski já foi usada diversas vezes como propaganda e, entre outras aparições, inspirou a capa de “You Could Have It So Much Better”, lançado em 2005 pelos escoceses do Franz Ferdinand.

 

O resultado da audição de “Mantra Concreto” é um raro prazer. A produção é assombrosa e consegue igualar em lindeza o lirismo que a empreitada já traz. A voz de Vitor se equilibra entre a sabedoria e o arrojo que os temas das letras impõem e oscilam com a naturalidade que é o maior trunfo aqui. Parece que ele e Leminski são amigos de longa data e se frequentam, tamanha a intimidade obtida. Mais que isso: cumplicidade. Difícil não se emocionar com várias passagem do percurso de quinze faixas. Já na abertura solene de “De Repente”, que introduz a proposta do álbum, ouvimos uma demonstração impressionante da produção – o timbre gordo de baixo que pontua o arranjo acústico que esconde pinceladas eletrônicas sutilíssimas. O gotejar de “Teu Vulto” serve como marcação rítmica enquanto os violões vão ganhando espaço; o andamento mais rápido de “Administério” mostra ótima performance de bateria. “Profissão de Febre” é absolutamente bela, com um dedilhado acústico que sugere fragilidade, até que entram os versos que cortam como faca: “Quando chove//Eu chovo//Faz sol//Eu faço”. As percussões e as tablas dominam o arranjo suingado de “Um Bom Poema”, enquanto “Será Quase” oscila entre citações acústicas que poderiam ter origens beatlemaníacas, ao passo que “Minifesto” tem pegada mais jazzística, com ajuda de Toninho Horta nas guitarras. A regravação de “O Velho León e Natália em Coyacán” também tem influência beatle, com violões lembrando um pouco “Dear Prudence”. A outra revisita, “Uma carta, uma Brasa Através” também vai nessa onda, parecendo inspirada nos timbres do “White Album” dos Fab Four.

 

Vitor Ramil consegue traduzir com suas vivências e experiências estes quinze momentos de Paulo Leminski. Faz isso com naturalidade, consegue misturar surrealismo e crônica de uma realidade possível em arte. Tudo funciona muito bem. “Mantra Concreto” é mais um belo álbum que ele nos dá. Não perca.

 

 

Ouça primeiro: “De Repente”, “Teu Vulto”, “Administério”, “Profissão de Febre”, “Um Bom Poema”, “Será Quase”, “Minifesto”, “O Velho León e Natália em Coyacán”, “Uma carta, uma Brasa Através”.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *