“Abandoned Luncheonette” e a estrada de Hall & Oates
É o ano de 1967 na região oeste da Filadélfia. No Adelphi Ballroom algumas bandas se preparam para apresentações no formato de batalhas. Dentre elas, estão a banda de Daryl Hall (The Temptones) e o grupo de John Oates (The Masters). Um acontecimento digno de filme seria responsável para que Daryl Hall e John Oates virassem simplesmente a dupla Hall & Oates: naquela noite, duas gangues brigariam entre si durante um momento das apresentações, fazendo com que Daryl e John ficassem presos dentro do elevador de serviço do local, esperando a confusão passar.
Hall & Oates – como a dupla foi carinhosamente apelidada – tocou em todos os lugares que existiam na década de 80. Lanchonetes, shoppings e supermercados. Dizem até mesmo que em delegacias e nos rádios de pilha que as pessoas, enquanto trabalhavam em hospitais, ouviam escondidas. Talvez por isso pareça ser impossível desassociar a dupla daquela época. Daryl e John conseguiram sintetizar o melhor da música pop oitentista, com batidas arrebatadoras, melodias chicletes e pura simpatia. Mais do que isso, eu sempre os vi como mais do que um fenômeno pop de uma época: inevitavelmente os descobri como grandes músicos, que carregavam suas canções com o melhor do soul da Filadélfia, com as encantadoras raízes musicais da Motown e também com alguns elementos do doce folk-pop dos anos 60.
Você provavelmente deve conhecer Daryl e John como os responsáveis por produzirem os maiores e mais matadores hits dos anos 80. A dupla leva essa fama com razão, já que conta com mais de 40 milhões de discos vendidos em sua carreira, além do impressionante feito de ter pelo menos seis de suas canções na posição número 1 da Billboard Hot – “Rich Girl”, “Kiss on My List”, “Private Eyes”, “I Can’t Go for That (No Can Do)”, “Maneater” e “Out of Touch” – e o de obter êxito com outros singles como “You Make My Dreams”, “She’s Gone”, “Say It Isn’t So” e “Sara Smile”, que marcaram o top 40. Estamos falando de 34 hits que entraram na Billboard Hot americana, sete álbuns com certificado platina e seis com certificado ouro (ambos pela RIAA). Até mesmo na parada inglesa a dupla da Filadélfia fez um considerável sucesso, pois conseguiu inserir dois de seus discos no Top 10 do Reino Unido, além de ter passado 84 semanas no Top 75 dos singles britânicos.
Mas a história do duo pop de maior sucesso começou bem antes da época em que todos esses hits explodiram nas paradas musicais.
Depois do fatídico dia da batalha de bandas e, pelo visto, também de gangues, Daryl e John iniciaram uma amizade. Ambos estudavam na Temple University, em uma época onde as pessoas misturavam as suas referências artísticas a despeito de raça, cor e gênero. A dupla teve, à primeira vista, muitas afinidades. A maior delas? Dizem eles que, simplesmente, o amor pela música.
Foi na Temple University, localizada na Filadéfila, onde Daryl e John puderam apertar seus laços para darem início à carreira de músicos. Enquanto ambos eram universitários na década de 60, a philly soul ascendia pela cidade. Inspirada pela soul music, a philly soul foi promovida pela Philadelphia International Records, gravadora liderada pela equipe de Kenneth Gamble e Leon Huff. Gamble e Huff foram arquitetos do soft rock e haviam conquistado os anos 60 com um doce e encantador som de assinatura que viajava entre o folk, o rock, o pop, o funk e o soul. E logo no começo da década de 70, grupos como Harold Melvin and the Blue Notes, The Delfonics, The Spinners, The O’Jays, The Stylistics, The Soul Survivors, The Intruders, alguns dos nomes da philly soul, começariam a conquistar muitos ouvintes.
A Filadélfia foi a primeira grande cidade ao norte da Linha Mason-Dixon e o um lugar que muitos afro-americanos se estabeleceram. Os afro-americanos trouxeram as suas raízes soul que se combinaram com a tradição clássica anglo-saxônica da Europa já presente na cidade. Por isso é possível perceber em todos os grupos da philly soul um lindo e doce acompanhamento de cordas se misturando com um incrível ritmo, que, para figuras como Daryl e John, se traduzem como a alma da música.
Em 1967, quando a Daryl Hall e John Oates se conheceram, Daryl já trabalhava com Kenny Gamble e Leon Huff, tocando teclados e cantando em várias canções dos grupos que passavam pela Philadelphia International Records. John, naquela época, se dedicava ao soul e à música folk e acústica. Naquele tempo havia uma sensação de mistura amistosa entre pretos e brancos na música, o que permitia que uma figura como Daryl Hall (loiro e branco) fosse um cantor de soul. Sabemos que 1968 foi o ano do assassinato de Martin Luther King e da sanção da “Civil Rights Act”. Dessa maneira, na virada da década de 60 para a de 70, a soul music passaria a responder de maneira mais política aos acontecimentos sociais, e a música negra, consequentemente, se apresentaria mais racializada.
Daryl Hall com os Tempations
O fato é que Daryl e John levaram, desde que lançaram seu primeiro disco em 1972 (“Whole Oats”), quase uma década para encontrarem o som que conhecemos em canções essencialmente pops como “I Can’t Go for That (No Can Do)”, “Maneater”, “Method of Modern Love” e “Adult Education”. Mas, revisitando até mesmo esses sucessos dos anos 80, em que a dupla se tornou algo muito diferente do que era no começo da carreira, é inegável a existência das raízes da philly soul e de outras influências de artistas como Temptations e Smokey Robinson.
Sempre há uma certa relutância por parte das pessoas, principalmente aquelas que vivem além do mainstream, em admitir que gostam verdadeiramente de todos aqueles incontáveis hits que a dupla lançava. Era brega dançar com “Kiss on My List”? Muito piegas lamentar uma despedida com “She’s Gone”? Ou pouco profundo pensar sobre os caminhos da vida com “Do What You Want, Be What You Are”? Talvez. Eu só sei que lembro muito bem da primeira vez que escutei a voz inconfundível do Daryl e as guitarras do John – um casamento perfeito. Era a canção “Private Eyes”, do disco homônimo. A partir desse dia, posso afirmar com convicção que os discos de Daryl Hall & John Oates foram algumas das coisas que mais escutei na minha vida.
Essas canções se repetiram muitas vezes nos meus ouvidos não só porque, até hoje, Hall & Oates continua tocando nas rádios. Na verdade, eu mergulhei profundamente e acabei permitindo que o duo pop mais carismático dos anos 80 me conquistasse para sempre. As raízes da philly soul e do folk, presentes nessas canções pop, modificaram os meus interesses musicais e até o meu próprio jeito de entender música.
Assim aconteceu. Em meu primeiro contato, quatro discos me ganharam instantaneamente: “Voices” (1980), “Private Eyes” (1981), “H20” (1982) e “Big Bam Boom” (1984). Não há como negar que são obras cheias de canções adoráveis e atraentes. Mais do que isso, são doses inesquecíveis de um ótimo pop-rock-soul, com incríveis vocais, expressivas letras e lindas construções musicais – menção especial para o disco “H20”, consistente e adorável do começo ao fim.
Mais para frente, descobri uma outra fase da dupla que me encantou. O que acontece é que antes que Daryl Hall e John Oates se tornassem uma máquina de hits a partir do ano 1980, especialmente com o álbum “Voices”, a dupla lançou uma série de discos com uma sonoridade diferente da conhecida. Um álbum específico dessa época, e extremamente marcante para mim, fez com que eu me desse conta de que (sim!) eu era uma grande fã da dupla: era ele o “Abandoned Luncheonette”, lançado em 3 de novembro de 1975 pela Atlantic Records.
“Abandoned Luncheonette” é um álbum pouco conhecido. Atualmente, passou a ser visitado e cultuado, mas ainda não é comum que as pessoas conheçam esse outro lado de Hall & Oates. O segundo álbum da dupla combina o folk e a philly soul, soando um pouco como um soft rock. O trabalho não alcançou sucesso expressivo, mas é, dos três primeiros discos e da primeira fase de Daryl e John, um dos mais interessantes.
“Whole Oats”, primeiro disco lançado em 1972, acabou falhando em causar impacto. “Abandoned Luncheonette” foi, então, o álbum responsável pela mudança definitiva de Daryl e John para Nova Iorque: ou seja, era quase como o primeiro álbum nova-iorquino. No segundo disco já é possível perceber um certo amadurecimento da dupla, mais autenticidade nas canções e a impressão de uma busca por identidade na sonoridade.
Sempre brinco que quando escutei “Private Eyes”, senti paixão pela dupla. Mas quando escutei “Abandoned Luncheonette”, senti amor. Não que o segundo disco de Daryl e John seja uma das coisas mais geniais já feitas – e na verdade, o meu relato é mais pessoal do que qualquer outra coisa. O fato é que o “disco da lanchonete abandonada” soou, para mim, com um encanto muito específico, simples e mágico. Nesse disco eu pude, pela primeira vez, reconhecer quem eram verdadeiramente o Daryl e o John do Hall & Oates. É um álbum autêntico, que me permitiu sentir ligada pela dupla de uma maneira mais profunda e até um pouco ingênua.
Faixa a faixa
A primeira canção, “When the Morning Comes”, introduz violões acústicos ao modo folk-pop, com uma linda melodia e ótimos vocais da dupla. A letra, que passa um sentido de espera e paciência, também nos remete à ideia de esperança: “I’ve got nowhere to go, so I can go anywhere / and it’ll be all right when the morning comes”. Na época de lançamento de “Abandoned Luncheonette”, Daryl e John tinham 27 e 25 anos, respectivamente. Ainda eram jovens adultos na cidade de Nova Iorque, tentando achar a sua voz e seu som, e a primeira faixa acaba por revelar, mesmo que sem querer, um espírito de busca e de liberdade em um mundo com tantas possibilidades e, muitas vezes, incertezas.
Seguindo com “Had I Known You Better Then”, uma canção escrita por Oates, temos novamente violões acústicos com uma doce construção de melodia e ótimo conjunto de vozes da dupla. Essa é uma das canções, em toda a carreira de Daryl e John, que mais demonstram como as suas vozes combinam e como os dois tem uma incrível sintonia musical. Mas nem sempre foi assim. Certa vez John contou em entrevista que odiava destruir a imagem que as pessoas tinham da dupla, mas a primeira demo que os dois gravaram teve um resultado bem terrível. No entanto, era fato de que o amor pelo soul acabava os unindo, para que encontrassem uma sintonia em meio à diferença.
A terceira faixa, intitulada “Las Vegas Turnaround (The Stewardess Song)” e cantada a maior parte do tempo por John, é uma típica canção do que podemos chamar hoje de yatch rock. Há nela um smooth delicioso com violões acústicos, saxofone e vocais incríveis. É quase como sentir uma brisa refrescante em um dia colorido e ameno. Nas últimas turnês, Daryl e John introduziram “Las Vegas Turnaround” no repertório, com um arranjo ainda mais encantador. Também foi a primeira canção em que conhecemos, em sua letra, Sara Allen, namorada de Daryl naquela época e musa inspiradora de outra canção muito conhecida da dupla, “Sara Smile” (lançada no álbum “Daryl Hall & John Oates” em 1975).
“She’s Gone”, quarta faixa, é um dos pontos altos do disco e uma de maior sucesso durante a carreira da dupla. A canção se imortalizou como uma das baladas mais conhecidas de Daryl e John, sendo inserida também nos repertórios dos shows mais atuais da dupla.
“I’m Just a Kid (Don’t Make Me Feel Like a Man)” também chega nos moldes de folk-pop, com John Oates assumindo os vocais principais. É uma das canções mais interessantes do disco em termos de letras e construções musicais, e uma das que mais impressionam ouvintes que estão acostumados com o Hall & Oates dos anos 80. A quinta faixa tem uma virada que introduz belas linhas de baixo, demonstrando como Daryl e John conseguiram unir em “Abandoned Luncheonette” boas doses de folk e soul.
Seguindo, temos “Abandoned Luncheonette” como uma boa canção. Muito encantadora, a sexta faixa é um exemplo de como a voz de Daryl Hall sempre foi incrível e inconfundível.
E já na sétima faixa, “Lady Rain”, temos um mix de soul, pop e funk, resultando em uma das músicas mais interessantes desse disco.
“Laughing Boy”, penúltima faixa, vem meio que no estilo Elton John, com apenas a voz e o piano de Daryl. Temos aqui Daryl mostrando o motivo de ser ele o dono de uma das melhores vozes da música pop. Encerrando, o disco traz a nona faixa, “Everytime I Look At You”, uma canção brilhante e também difícil de acreditar, à primeira vista, de que se trata realmente do Hall & Oates. “Everytime I Look At You” é um funk incrível com ótimos solos de guitarra e, novamente, ótimos vocais da dupla.
O segundo disco da dupla não é um sucesso comparado ao que Daryl e John fizeram nos anos 80, mas representa uma fase de erros e acertos que foi essencial para que eles se tornassem o duo pop de grande sucesso. Depois do lançamento de “Abandoned Luncheonette”, Daryl e John lançariam “War Babies” (1973), com algumas influências até mesmo de David Bowie (Daryl e John abriram para Bowie na turnê de Ziggy Stardust) e com a primeira vez do rock mais incorporado à sonoridade da dupla. “War Babies” com sua expansão de conceitos e psicodelia encerraria a fase na Atlantic Records e o próximo disco, “Daryl Hall & John Oates”, com uma capa icônica meio glam rock, iniciaria os trabalhos na dupla na RCA. Os discos “Bigger Than Both of Us” (1976), “Beauty On a Back Street” (1977) e “Along The Red Ledge” (1978) e “X-Tatic” (1979) viriam após até que, finalmente, em 1980, Daryl e John mudariam mais profundamente a sua música.
1980 é o ano de um disco decisivo para a carreira da dupla. E falo aqui do fantástico “Voices” em que Daryl e John assumiram a produção por conta própria, entregando um resultado que passava pelo R&B, synthpop, rock e soul. “Voices” é um disco muito especial e importante porque os anos 80 se iniciavam com uma fase em que o rock e o soul estavam bastante divididos, mas Daryl e John acabaram por conseguir sintetizar essas influências em um álbum só.
A consequência não poderia ser diferente. “Voices”, lançado 29 de julho de 1980, foi um sucesso e passou 100 semanas na Billboard 200. Foi esse o disco que abriu a era de ouro para a dupla. E mesmo que agora eles fizessem pop, nunca houve dançarinos ou explosões em seus shows. Continuavam como dois amigos que tocavam soul, com a diferença de criarem, agora, uma nova roupagem para s suas canções.
John falou certa vez em entrevista que “a essência de uma ótima música é: você pode simplesmente pegar um violão e tocá-la, sem produtores, sem tecnologia”. John Oates é um grande músico que certamente não tem preconceitos com canções feitas por computadores. John fala, nessa frase, sobre a essência da soul music, arquétipo presente em toda a carreira da dupla.
As pessoas continuam revirando os olhos com desdém quando eu afirmo como sou fã de Daryl Hall e John Oates, e como elas também deveriam ser. Como se houvesse algum tipo de culpa em me encantar com o que elas chamam de “música de consultório de dentista” – e é claro que eu discordo totalmente dessa última informação. Sempre coloquei muitos esforços para que o mundo entendesse que a dupla é muito mais do que clipes bobos transmitidos pela MTV. Na verdade, acredito que há muito mais na música pop do que podemos imaginar. Depois de um certo tempo, acabei me contentando com o fato que as pessoas continuarão falando por aí como é hilário o bigode de John e como é brega a jaqueta de oncinha do Daryl, ignorando todo o resto. Mas, no final, nada importa quando se tem canções que nos mudam profundamente e nos fazem buscar por sentimentos dentro de nós. E é exatamente isso que essa dupla representa na minha vida.
Tantos anos depois, me apego às falas de Daryl quando disse que todas as pessoas que importavam para ele elogiavam a dupla Hall & Oates: Bob Dylan, Paul McCartney, Al Green, The Spinners e Smokey Robinson. Há uma história contada à Rolling Stone de que Michael Jackson teria “roubado” a linha de baixo de “I Can’t Go for That (No Can Do)” para criar um dos seus maiores sucessos, a canção “Billie Jean”. Até mesmo Ben Gibbard do Death Cab for Cutie já listou suas canções preferidas da dupla e declarou a influência que Daryl e John exerceram sobre a sua formação musical.
E “Abandoned Luncheonette” marcou como o começo da carreira de uma dupla com incrível estética, harmonia, sintonia e sensibilidade. Mais do que isso, representou uma experimentação para que Daryl e John traçassem o seu caminho, sua voz e o seu som, de modo a se tornarem aqueles que criariam as canções mais vibrantes de uma época. Gamble, da Philadelphia International Records, sempre disse que Hall & Oates é uma consequência da philly soul, mas as decisões que a dupla resolveu tomar a tornaram única. Durante todos os seus lançamentos, Daryl e John continuaram vendo o soul como um ideal platônico, da mesma maneira que viam quando se conheceram nos anos 60. Talvez seja por isso que até as canções mais bobas como “You Make My Dreams” e “Kiss on My List” continuam arrebatando os nossos corações quando (ainda hoje) tocam na rádio ou em um disco antigo. A sorte é de quem se permite ser encantado.
Maísa Mendes de Carvalho é piauiense com toques paulistas, advogada, criadora e apresentadora do Distorção Podcast, amante das artes humanas e apaixonada por música.
Ótimo texto!