“Vereda da Salvação”, a peça, o Brasil

 

Conheci o dramaturgo paulista Jorge Andrade depois de assistir a encenação de sua peça Vereda da Salvação pelo grupo de teatro da minha sobrinha, em 2018, quando ela estava no sétimo ano do fundamental.

 

Quando nos sentamos em nossas cadeiras, eu, minha mãe, meu irmão e minha cunhada não imaginávamos que choro, revolta e estupefação nos aguardavam.

 

Vereda foi escrita por Jorge em 1964 e é baseada em uma tragédia acontecida na cidade de Malacacheta, Minas Gerais no ano de 1955, quando um grupo de convertidos à igreja Adventista da Promessa matou 4 crianças e torturou várias pessoas moradoras da clareira do Catulé em nome de uma perseguição ao demônio que estaria assombrando a comunidade.

 

Dez famílias habitavam o Catulé, 44 pessoas que mantinham uma relação de compadres e relativo respeito até a chegada de Joaquim e Onofre, dois homens alfabetizados que voltaram de Presidente Prudente carregando a palavra adventista de sua igreja e criando uma disputa com Joaquim, morador do local há 3 anos e negociador entre os trabalhadores e os donos das terras, com quem “dividiam” o pouco lucro do seu trabalho.

 

Valendo-se do domínio da leitura e do discurso, Joaquim e Onofre logo ganharam poderes de líderes religiosos, pregando a volta de Cristo, a existência de uma Terra Prometida e a extrema importância do sacrifício de se preparar para tal momento.

 

Na semana santa de 1955 eles, ajudados por suas “profetisas” começaram uma busca pela comunidade por manifestações do diabo, causando uma sucessão de acusações, espancamentos e manifestações de milagres e suplícios de pessoas dispostas a alcançar a salvação ainda que para ela assassinatos, espancamentos e a tortura de Manuel e sua família, que não se renderam ao surto coletivo comandado por seus desafetos, fossem necessários.

 

No domingo de Páscoa, policiais invadiram a comunidade para prender os dois falsos Messias, que acabaram mortos tendo seus últimos desejos atendidos, o de levar com eles a palavra de Deus.

 

Joaquim e Onofre foram encontrados com páginas da Bíblia em suas bocas.

 

A fina linha entre a religiosidade brasileira e a violência foi um dos pilares do trabalho de Jorge Andrade. Chama a atenção o uso das palavras demônio e danação e sua força para convencer as massas a aceitar a demagogia religiosa como solução para a sua miséria, ainda que um grande desastre a espere.

 

Jorge fez algumas modificações em seu texto, transformou algumas relações familiares e incluiu personagens, mas a essência do perigo e da crueldade de quem usa a religiosidade em um projeto insano de poder continuou a mesma: impressionante e de entristecer.

 

Na peça, a morte das crianças acontece quando sem a compreensão do absurdo martírio imposto por Joaquim duas delas tomam água de um poço porque estavam morrendo de sede.

 

“Jovina :Mãe! Eu estava com sede. Eu não queria vir. A Eva não fugiu, ficou na mata. Eu só tinha medo… Queria ficar junto da senhora “

“Joaquim: É o que custa o salvamento, Germana. O Cristo foi salvo pelo sangue das crianças na mão de Herode. Assim também nós tudo”

 

Luísa, minha sobrinha fez o papel de Germana, mãe da menina morta e fiel às promessas de Joaquim. Numa das cenas mais impressionantes da peça ela perde todo o controle do amor materno e da gravidade da situação e é absorvida pelo escapismo religioso:

“Germana: Minha filha morreu! Está livre! Dolor! Meu nome é Jeremias! Quem me chamar de Germana será destruído. Não pertenço mais à Terra. O danado não pode me fazer sofrer mais. Já levou tudo o que era meu. As árvores estão cheias de anjo! Parece passarinho branco!”

 

Um dos nomes mais importantes do nosso teatro moderno Jorge não é tão reverenciado pelo grande público contemporâneo como Nelson Rodrigues, o que é uma pena, porque a atualidade das suas peças é necessária e assustadora, principalmente nos últimos tempos de retrocesso brasileiro e em todos os outros em que pouca coisa mudou no país em que a religiosidade tóxica aprendeu como abrir caminho entre um povo não atendido pelo Estado

 

Mas permitam-me um pouco de otimismo: sou uma mulher de quase quarenta anos, apaixonada por literatura, professora, escritora e apresentada a ele por um grupo de adolescentes que escolheram interpretar Vereda da Salvação pela sua relevância histórica.

 

A arte é salvação, resgate e compreensão do nosso território, coisas a serem aprendidas todos os dias, ainda que em meio a um pesadelo que parece interminável.

 

Vida longa a Jorge Andrade!

Debora Consíglio

Beatlemaniaca, viciada em canetas Stabillo e post-it é professora pra viver e escreve pra não enlouquecer. Desde pequena movida a livros,filmes e música,devota fiel da palavras. Se antes tinha vergonha das próprias ideias hoje não se limita,se espalha, se expressa.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *