“Vamos celebrar epidemias….”
Ontem o número de mortos diários pela covid-19 chegou a 1910. Em alguns momentos, simplesmente faltam palavras para descrever a sensação de medo, raiva, desamparo e vulnerabilidade que todos estamos experimentando nestes tempos. Então, peço desculpas, não deu para fazer outro texto sobre o absurdo que estamos vivendo. Daí, levando em conta que a música é uma arte que, ao mesmo tempo, documenta o seu tempo, viaja ao longo dele, podendo tornar-se atemporal, recorri a uma canção para falar por mim.
Este é o caso de “Perfeição”, canção da Legião Urbana, single que puxou o álbum “O Descobrimento do Brasil”, que o grupo lançou em 1993. Lembro de ouvi-la no rádio pela primeira vez e me surpreender com o arranjo que traz baterias eletrônicas em andamento bem moderninho pra época e o clima de rap que a faixa tem. E, claro, sua letra, escrita no Brasil do governo Itamar Franco, que herdava o peso de décadas de ditadura civil-militar e do malfadado collor de mello.
Sendo assim, a sucessão de cenas terríveis e verdadeiras que Renato Russo vai descrevendo na letra de “Perfeição” poderia ser entendida como a herança acumulada destes tempos terríveis devidamente materializada no jeito de agir e existir da sociedade brasileira.
Convido as leitoras, leitores e todo mundo a brincar de achar algum erro nesta sucessão de palavras. Está tudo aqui, inclusive o terrível e profético verso “vamos celebrar epidemias”.
A Legião Urbana, com “Perfeição”, foi onde nenhum artista de sua geração chegou.
Vamos celebrar a estupidez humana
A estupidez de todas as nações
O meu país e sua corja de assassinos
Covardes, estupradores e ladrões
Vamos celebrar a estupidez do povo
Nossa polícia e televisão
Vamos celebrar nosso governo
E nosso Estado, que não é nação
Celebrar a juventude sem escola
As crianças mortas
Celebrar nossa desunião
Vamos celebrar Eros e Thanatos
Persephone e Hades
Vamos celebrar nossa tristeza
Vamos celebrar nossa vaidade
Vamos comemorar como idiotas
A cada fevereiro e feriado
Todos os mortos nas estradas
Os mortos por falta de hospitais
Vamos celebrar nossa justiça
A ganância e a difamação
Vamos celebrar os preconceitos
O voto dos analfabetos
Comemorar a água podre
E todos os impostos
Queimadas, mentiras e sequestros
Nosso castelo de cartas marcadas
O trabalho escravo
Nosso pequeno universo
Toda hipocrisia e toda afetação
Todo roubo e toda a indiferença
Vamos celebrar epidemias
É a festa da torcida campeã
Vamos celebrar a fome
Não ter a quem ouvir
Não se ter a quem amar
Vamos alimentar o que é maldade
Vamos machucar um coração
Vamos celebrar nossa bandeira
Nosso passado de absurdos gloriosos
Tudo o que é gratuito e feio
Tudo que é normal
Vamos cantar juntos o Hino Nacional
A lágrima é verdadeira
Vamos celebrar nossa saudade
E comemorar a nossa solidão
Vamos festejar a inveja
A intolerância e a incompreensão
Vamos festejar a violência
E esquecer a nossa gente
Que trabalhou honestamente a vida inteira
E agora não tem mais direito a nada
Vamos celebrar a aberração
De toda a nossa falta de bom senso
Nosso descaso por educação
Vamos celebrar o horror
De tudo isso com festa, velório e caixão
Está tudo morto e enterrado agora
Já que também podemos celebrar
A estupidez de quem cantou esta canção
Venha, meu coração está com pressa
Quando a esperança está dispersa
Só a verdade me liberta
Chega de maldade e ilusão
Venha, o amor tem sempre a porta aberta
E vem chegando a primavera
Nosso futuro recomeça
Venha, que o que vem é perfeição
Em tempo: há uma citação belíssima a “O Bêbado e a Equilibrista”, de Aldir Blanc e João Bosco na melodia dass duas últimas estrofes, algo praticamente genial.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.