Los Hermanos – Além Do Que Se Viu

O show dos Los Hermanos no Maracanã revelou mais do que uma banda em comunhão com seu público. A presença das 42 mil pessoas pagantes, em tempos de ataque frontal à cultura e à diversidade, é uma mensagem tão forte que vai além da questão do gosto pessoal sobre a banda carioca e seus discos e canções. A felicidade dos quatro – Camelo, Amarante, Barba e Medina – e de seus músicos de apoio, no palco montado no Maracanã, em frente a uma multidão de pessoas, revelava algo que vai, com o perdão do trocadilho, além do que se vê.

Os fãs sabem, quem é do Rio sabe: a banda batalhou bastante para chegar ao posto que ocupa hoje. Foram inúmeros shows em espeluncas da cidade e arredores – a maioria já extinta – com ingressos custando menos de cinco reais em várias oportunidades. Uma banda independente, sem adereços visuais, sem apelações de clipes, danças, qualquer acessório à música, evoluir, em 20 anos, do Empório para o Maracanã, é muita coisa. Sem mencionar que, desde 2006, Los Hermanos deixaram o ofício de gravar novas canções, só mudando esta condição neste ano, quando soltaram a boa “Corre-Corre”. É uma banda, portanto, que cantou, diante de um público devoto, canções que têm entre 14 e 20 anos de idade.

Após o show no sábado e ontem, domingo, as redes sociais dividiram-se entre fãs, não-fãs e um pessoal mais neutro e reflexivo, que ponderava, justamente, sobre esta evolução da banda e o quanto sua carreira merecia respeito. Afinal de contas, o grupo partiu de um álbum lançado em 1999, com a produção de … Rick Bonadio, com uma faixa contando com a participação de Roger Moreira. Tudo fazia supor que se tratava de uma formação beirando o caricato, que era vendida na época como “hardcore carnavalesco”. Balela. Os Hermanos eram autênticos representantes de várias formações de natureza ska-punk, surgidas nos anos 1990 no Rio, gente como Los Djangos e Acabou La Tequila, por exemplo, que chegaram a lançar discos na mesma época – talvez um pouco antes – sendo que Kassin, que viria a produzir o segundo disco dos Hermanos, “Bloco Do Eu Sozinho”, era um dos integrantes do Acabou. Era uma galera que vivia batalhando por shows, publicava zines, se ajudava, compartilhava uma cena musical, da qual ainda faziam parte revistas, jornais, colunas, programas de rádio e algumas figuras-chave. Posso afirmar com certeza de testemunha ocular dessa história.

De alguma forma, por mais que os Hermanos tenham feito sucesso já a partir da estreia, com “Anna Julia”, podemos dizer que, só a partir do segundo disco, seu desejo estético começou a ser plenamente satisfeito. Saiam de cena os andamentos mais rápidos e o carnaval colorido e vinham a contemplação, os climas, os experimentos em estúdio. Daí para o ápice criativo de “Ventura” (2003), que deu mais foco às canções e as tornou mais robustas em termos de arranjo e pegada. Na composição, Camelo e Amarante mostravam evolução como cronistas de um cotidiano carioca que beirava um surrealismo triste que, lamentavelmente, parece ter se perdido, não pela inexistência, mas pela aparente incapacidade de ser percebido e relatado. Três anos depois, “4” veio fechar a conta dos discos de inéditas dos Hermanos. Mais lento e experimentla, o disco não deixou de cair no gosto dos fãs por conta disso, mesmo emplacando um único single incontestável e radiofônico: “O Vento”. Depois disso, silêncio, projetos paralelos, carreiras solo e uma diminuição de alcance de público.

O show do Maracanã reavivou essa saudade de algo. De um Rio, de uma crônica, de alguém que cante versos como…

“E os poucos que viram você aqui me disseram que mal você não faz”.

“Se o que eu sou também é o que eu escolhi ser…aceito a condição”.

“A gente corre pra se esconder e pra se amar, amar até o fim. Sem saber que o fim já vai chegar”.

“O quanto eu te falei, que isso vai mudar. O motivo eu nunca dei”.

“Tire esse azedume do meu peito e, com respeito, trate minha dor”.

“Posso ouvir a vento passar, assistir a onda bater, mas o estrago que faz, a vida é curta pra ver”.

…e seja acompanhada por um coro de 42 mil pessoas. De uns tempos pra cá, os assuntos parecem desprezar qualquer questão que envolva reflexão ou perspectiva.

O show dos Hermanos não foi político, não no sentido convencional. Fora alguns coros de “Lula Livre” ou “ei, bolsonaro, vai tomar no cu”, dos quais a banda não participou, exceto pela sutilíssima marcação de Barba no bumbo, as canções foram executadas com arranjos originais, sem espaço para mais nada. O grupo também se restringiu a agradecer o comparecimento, dizer que contaria sobre esta noite para os netos e tudo nessas declarações soou sincero, como algo que a gente diria, caso estivesse no lugar dos caras.

Provavelmente o texto reflete alguma identificação com a banda. Afinal de contas, eu estava lá, no momento em que surgiram. Camelo chegou a escrever textos para a Rock Press e cheguei a fazer uma entrevista com a banda no mesmo dia em que minha segunda mãe faleceu – notícia que recebi imediatamente após desligar o telefone naquele 13 de maio de 2003. Mesmo assim, gostando da banda, tive meus anos de fastio sobre ela e o que representava. Agora, depois do show, em meio à turnê nacional que empreende no peito e na raça, não dá pra não reatar conexões.

Posso estar enganado, mas as 42 mil pessoas no Maracanã – e as outras milhares, em outros estádios do país – querem dizer alguma coisa: há um outro Brasil existente. Ele não está na mídia, nos festivais de música que as pessoas compram ingresso sem saber o show que verão, nos programas de música dos canais de TV paga da grande mídia. Há mais do que a vista alcança. Nós, que trabalhamos com música e cultura alternativa, sabemos. No entanto, é ótimo ver que muito mais gente sabe.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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