Três Resenhas: Van Morrison, The Clash e Everything Everything

 

 

 

 

Van Morrison – What’s Gonna Take?
(Exile)
79′, 15 faixas.

1.5 out of 5 stars (1,5 / 5)

 

 

 

 

Vergonha alheia define o momento atual da carreira de Van Morrison. De um dos mais renomados e consistentes músicos de seu tempo, Van tornou-se um dos baluartes contra o isolamento social durante os momentos mais acirrados da pandemia de covid-19. Várias vezes ele surgiu na mídia atacando o governo e acusando de irresponsáveis os que defendiam o isolamento social como medida eficaz contra a transmissão da doença. Tal momento lhe rendeu colaboração com outro ex-ídolo musical, iguamente contrário às políticas anti-covid19, Eric Clapton, e deram munição para que Van criasse um … álbum duplo, cheio de momentos constrangedores anti-governo, antissistema e acusando tudo e todos de manipulados e fracos.

 

Se este álbum duplo, “Latest Recording Project, Volume 1”, continha 28 faixas, o novo trabalho de Morrison, “What’s Gonna Take?”, tem apenas 15, mas mantém o constrangimento em níveis inimagináveis, dando continuidade à lenga-lenga anti-isolamento e pagando de paladino do esclarecimento ante um mundo conspirador e que esconde de todos uma suposta verdade. Van resvala num triste rosário de teorias da conspiração, ancorado numa defesa da liberdade que não resiste a uma argumentação meio bêbada em qualquer mesa de boteco da galáxia. O que salva este novo trabalho do naufrágio total, é a competência dele e de sua banda como músicos, arranjadores, compositores e tal. Mesmo assim, melhor ficar com os trabalhos de outros tempos de Van, eternos em sua majestade, em tempos que ele pregava o entendimento e a comunhão entre as pessoas. Este Van tiozão do zap tardio é lamentável.

 

Ouça primeiro: “Dangerous”

 

 

 

 

 

 

The Clash – Combat Rock + The People’s Hall
(Sony)
101′, 24 faixas.

5 out of 5 stars (5 / 5)

 

 

 

 

“Combat Rock” é um “disco moderno” do Clash na medida em que incorpora já as informações que vinham da música negra diaspórica atualíssima daquele início de anos 1981. Quem era urgente naquela tempo sabia que era preciso mirar no que era feito nos subterrâneos do mundo. Isso significava inserir quantidades razoáveis de reggae, funk e derivados sempre que possível e já era possível ver como o som da “última banda de rock que importava” soava em faixas como “Red Angel Dragnet”, “Straight To Hell”, “Overpowered By Funk”, “Sean Flynn”, a suprema “Ghetto Defendant” e até no megahit “Rock The Casbah”. Tudo bem que o maior sucesso por aqui foi o rockão “Should I Stay Or Should I Go”, calcado num dos riffs de guitarra mais conhecidos de todos os tempos, mas até ele já tem uma certa malemolência implícita. Também era um disco típico da eloquência da banda naquele tempo, uma vez que suas faixas são o que sobrou de um projeto de álbum duplo, que se chamaria “Rat Patrol From Fort Bragg” e resultaria em algo do mesmo tamanho de “Sandinista” e “London Calling”, seus antecessores.

 

A edição de 40 anos do álbum vem com faixas gravadas no estúdio inglês “People’s Hall”, após uma turnê/residência em Nova York, ocorrida em 1981. Sabemos muito bem que a banda já havia se transformado numa criatura muito distinta de suas origens punk e é ótimo ver como isso se materializa em gravações como “This Is Radio Clash”, impregnada de funk e percussões. É um total de doze faixas compiladas como bônus nessa reedição de “Combat Rock”, que mostra como o grupo absorvia essas novas influências que haviam se insinuado em “Sandinista” e que vinham depuradas aqui. Destaque absoluto para a versão extendida de “Sean Flynn”, “Futura 2000” (que é um rap), “Long Time Jerk”, “Idle In Kangaroo Court” (que é um outtake) e uma outra versão de “Know Your Rights”.

 

Esta fase final da carreira do Clash é muito mais interessante que suas origens e mostra como a banda abraçou esta modernidade e se transformou irremediavelmente por conta disso. Para melhor.

 

Ouça primeiro: “This Is Radio Clash”, “Know Your Rights”, “Rock The Casbah”

 

 

 

 

 

 

Everything, Everything – Raw Data Feel
(AWAL)
54′, 14 faixas

4 out of 5 stars (4 / 5)

 

 

 

 

Direto de Manchester chega o quarteto de dance pop Everything Everything, que transita na alameda que divide moderninhos e velhuscos, oscilando influências e mostrando que tem uma mão ótima para canções grudentas. Este “Raw Data Feel”, sexto disco lançado pelo grupo, seria apenas mais um bom disco de música para dançar e ouvir sem qualquer compromisso, não fosse por um detalhe: uma INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL participou do processo criativo. Sim, é isso mesmo. Um computador desenvolvido por Mark Hanslip, doutorando no Centro de Pesquisa em Música Contemporânea da Universidade de York, foi utilizado como uma espécie de gerador de letras, a partir da alimentação de dados que os integrantes da banda forneceram. O vocalista e compositor principal, Jonathan Higgs declarou que apenas 5% das sugestões do computador foram usados, mas, bem, já é um grande marketing.

 

O que se ouve é um belo disquinho de pop alternativo atual. As canções são melódicas, bem arranjadas, usam teclados como alicerces e enfiam, ora aqui, ora ali, um tantinho de guitarras ou timbres diferentes. De cara a gente já gosta de “Pizza Boy”, que tem uma ótima linha de baixo e um bom uso de tecladinhos fazendo timbres fofos e dançantes. Em seguida, “Jennifer” tem bateria rapidinha e mais comunhão de guitarras e teclados em favor de melodia dançante e arejada. A sintomática “My Computer” é outro destaque, com um belo arranjo de baixo sintetizado e bom uso de climas em contraste com a voz, tudo com uma aura oitentista revisitada que parece sempre funcionar. E o fecho com “Software Greatman”, título sugerido pelo tal programa de computador, deixa o ouvinte com o ouvido em pé, pensando se computadores fazem ou não fazem som. Ora, claro que fazem, mas será que deixaremos as licenças poéticas para trás e teremos um Kraftwerk às avessas, com uma inteligência artificial usando quatro robôs fingindo serem humanos? Enfim…Ouça o disco longe do hype, ele é bem legalzinho.

 

Ouça primeiro: “Pizza Boy”, “Jennifer”

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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