Reouvindo o Gilberto Gil de 1989-1992

 

 

A presença de Gilberto Gil no Mita Festival, e o show que ele fez na etapa carioca do evento, me fizeram lembrar de uma fase pouco prestigiada em sua carreira. Entre 1989 e 1992, o músico baiano viveu um verdadeiro turbilhão de emoções e situações pessoais que, certamente, refletiram em sua obra. Uma olhada para aquele tempo nos dirá que os álbuns “Eterno Deus Mu Dança” (1989) e “Parabolicamará” (1992), não desfrutam do mesmo prestígio que outros lançamentos de Gil, tanto antes, quanto depois deste período. Só para lembrar, ele estivera no topo das paradas de sucesso com “Nos Barracos da Cidade”, faixa de seu álbum “Dia Dorim, Noite Neon”, de 1986 e se apresentara no Rock In Rio a partir do sucesso do ótimo “Raça Humana”, de 1984. E, uma década mais tarde, renovaria seu repertório e carreira com dois lançamentos decisivos: o “Acústico MTV” e o álbum colaborativo “Tropicália 2”, em parceria com Caetano Veloso, ambos de 1994. Como o próprio Gil diz que às vezes é necessário ir para poder voltar, é interessante examinar com carinho os álbuns que estão, justamente, entre esses dois períodos de sucesso e visibilidade, tentando entender o porquê deles tenderem mais ao status de “obras para fãs dedicados” da obra do cantor. Eu, por minha vez, sempre gostei de ambos, mas talvez seja mesmo hora de reavaliá-los e falar novamente deles.

 

 

Gil foi eleito vereador de Salvador em 1988, pelo PMDB. Ele e a família já estavam morando por lá, uma vez que fora convidado para assumir a Fundação Gregório de Matos no ano anterior. Devidamente instalado por lá e adentrando a carreira política, Gil iniciaria seu único mandato no Legislativo com uma gestão voltada para a cultura e para a preservação do meio ambiente. Já em 1989 ele estava no PV e “Eterno Deus Mu Dança” é, não por acaso, um reflexo sonoro deste momento de alterações. O título já entrega a conjuntura e o álbum, de fato, não tem um dos repertórios mais inspirados do mundo, mas, ora, é Gil, o que significa que sempre há uma beleza à espreita. Compartilhada com Chico Buarque, “Baticum” veio como single, ela que também faria parte do álbum homônimo de Chico, lançado naquele ano. A letra é um exame intuitivo da globalização que já se avizinhava naquele tempo, com rimas misturando a grife italiana de roupas (e equipe de Fórmula 1) Benetton, a fabricante de eletrônicos japonesa Sanyo e a gravadora Warner com uma festa na beira do mar, bem típica, brasileira e avalizada por este novo “estar no mundo”. A faixa-título, um funkão com participação de Ed Motta nos vocais e um arranjo que ficou datado, é um dos exemplos de como a sonoridade desse disco não foi muito bem resolvida.

 

 

Produzido por Liminha, fiel parceiro de Gil desde o início da década, o álbum tem timbres que perderiam espaço meses depois, fruto da mudança sonora que a entrada nos anos 1990 despertaria. Teclados, baixos sintetizados, um ar meio plástico jogam contra a maioria das canções, que já não são exatamente ótimas Um bom exemplo de tesouro escondido aqui é “Do Japão”, outra ode à modernidade, dessa vez materializada no país oriental, como epicentro de uma mudança constante – aliás, o tema central do disco é a mudança como constante do universo, uma sacada tipicamente gileana. O instrumental aqui é anguloso, ainda que o saxofone de Raul Mascarenhas soe meio irritante às vezes. Celso Fonseca, na guitarra e Jorginho Gomes, na bateria, são dois grandes nomes da banda que Gil veio montando aos poucos e que o acompanharia por bom tempo. Outra belezura escondida aqui é “Mon Tiers Monde”, composta e cantada em francês, com letra sensacional falando sobre a mudança na categorização das divisões dos países em Primeiro e Terceiro Mundos. É outro indício da lindeza da preocupação constante de Gil com a modernidade e com o passar do tempo. E o grande hit do álbum veio na canção-tema da novela global “O Salvador da Pátria”, “Amarra O Teu Arado A Uma Estrela”, que, de fato, tem uma das letras mais inspiradas por aqui. Também é preciso constatar que Gil gravou uma canção bem fraca por aqui: o samba “De Bob Marley a Bob Dylan”. Mas, sinceramente, este é um disco que fala sobre mudança e sua presença constante nas nossas vidas que, por ironia, ficou preso em 1989.

 

 

Para excursionar durante o mandato de vereador, Gil pediu licença à Câmara várias vezes, levando a turnê de “Mu Dança” para vários lugares. Enquanto isso, acompanhava de longe o sucesso da banda carioca Egotrip, da qual seu filho Pedro era baterista. No início de 1990, o jovem de 19 anos retornava de São Paulo para o Rio e dormiu no volante, sofrendo um grave acidente automobilístico. Pedro ficou em coma por uma semana e faleceu no início de fevereiro, devastando Gil completamente. Ainda lembro dele aparecendo no Domingão do Faustão falando da incapacidade em compreender a quebra na lógica que dizia que um filho deve enterrar o pai e não o contrário. O fato é que ele continuou a se apresentar e a atuar na Câmara de Vereadores de Salvador, começando a burilar o repertório de seu próximo trabalho, “Parabolicamará”. Nele Gil mergulharia totalmente na leitura dos fatos históricos recentemente ocorridos, especialmente a queda do Muro de Berlim e todas as consequências daquele início de anos 1990, que seriam a porta de entrada da visão neoliberal de mundo nas nossas vidas. Autor atento e pensador inquieto, ele já era capaz de perceber a armadilha por trás de tanta bonança anunciada por este verdadeiro kit de propaganda que se abateu sobre a mídia da época.

 

 

Em termos de canções, “Parabolicamará” é bem melhor que o trabalho anterior. E conceitualmente ele também tem mais foco e propriedade. Se “Mu” era sobre a constância da mudança, este novo álbum era sobre a materialização de uma profunda mudança no planeta e sua consequente análise. É um trabalho antenadíssimo – sem trocadilho – e que mostra as origens da preocupação/fascínio de Gil pelo cyberespaço. As origens da emblemática “Pela Internet”, canção que ele lançou anos depois, atualizando o samba “Pelo Telefone”, é fruto direto desta primeira análise dos novos tempos com “Parabolicamará”. O que compromete um pouco o álbum é o velho vilão da época – a produção datada de Liminha. Se pensarmos que, dois anos depois, bandas como Chico Science e Nação Zumbi e mundo livre s/a lançariam álbuns capazes de atualizar o som que vinha dessa encruzilhada entre modernidade e tradição sob a ótica noventista, fico pensando como “Parabolicamará” soaria muito mais forte e urgente se dispusesse desta mesma abordagem.

 

 

De qualquer forma, o álbum merece reavaliação por conta da capacidade de Gil perceber a chegada da globalização e erguer críticas muito astutas, numa época em que a maioria esmagadora dos intelectuais estava fascinada com a premissa teórica de igualdade de condições nas relações de troca entre centros e periferias do mundo. As duas primeiras canções, “Madalena” e a faixa-título, atacam o problema de duas formas. A primeira, que tem as guitarras de Herbert Vianna no arranjo, dentro do contexto do álbum, soa como uma espécie de atualização da crítica feita por Gil décadas antes, em “Procissão”, na qual ele via a entrega da esperança de melhoras da vida nas mãos do divino, promovendo a chamada “alienação essencial” de Karl Marx, ou seja, abrir mão da própria capacidade de transformar em favor de algo inexistente. Em “Madalena” (que já fora registrada por Gil em “Barra 69” e é composição original de Isidoro de Oliveira, de 1961), o foco está na pobreza diante da abundância, o que mostra a divisão injusta das riquezas materiais, um processo que, segundo a letra irônica, só seria resolvido com preces ao Senhor do Bonfim. “Parabolicamará”, a canção, traz o fascínio de Gil pelo alardeado encurtamento das distâncias a partir da integração do mundo pela mídia e pela comunicação, algo que vinha como um media kit do neoliberalismo, devidamente turbinado pela queda dos regimes socialistas na Europa.

 

A junção de “parabólica” e “camará” (um tipo de arbusto ou o chamamento da capoeira equivalente a companheiro) mostra que a antena – figura bem comum nos telhados do mundo – seria o meio de transmissão e captação das informações, podendo levar esse fluxo em mão dupla. No nosso caso, a “parabolicamará” seria uma apropriação da nossa cultura em relação a esta nova facilidade, tornando-a “nossa” automaticamente. Mas a letra da canção não deixa isso certo, usando belos versos como:

 

Antes mundo era pequeno porque Terra era grande
Hoje mundo é muito grande porque Terra é pequena
Do tamanho da antena parabolicamará

 

 

Neles Gil coloca em dúvida se haverá equilíbrio nessa troca de informações e mesmo se conseguiremos dar conta de tantos dados. E o arranjo da canção aponta para uma modernização de ijexá, um ritmo afro-baiano que assinala bem a identidade com fluxos de informação da diáspora negra.

 

 

O resto do álbum conserva essa preocupação com o novo tempo e a curiosidade com as possíveis contradições que já surgiam. Gil é muito feliz quando grava “O Fim da História”, outra canção que questiona o neoliberalismo, colocando em dúvida o artigo escrito pelo acadêmico americano Francis Fukuoka, que fora assessor do governo de Ronald Reagan, dizendo que, a partir do suposto fim do socialismo como proposta de governo, a história, baseada na luta de classes, chegara ao fim. A letra ataca frontalmente essa premissa que, anos mais tarde, tornou-se risível nos meios acadêmicos. Também são interessantes a agitada “Quero Ser Teu Funk”, mesmo vitimada pelo arranjo datadíssimo, e a simpática “Buda Nagô”, em homenagem a Dorival Caymmi, com participação de Nana Caymmi nos vocais. A versão de “Sina”, sucesso de Djavan, não compromete e “O Baião” também é legal, restando espaço para a cota de péssimas canções, no caso, ocupada pela terrível “Neve Na Bahia”, na qual Gil rima “Xuxa” com “bruxa”, fato que lhe rendeu maus momentos de incompreensão com a ex-apresentadora infantil e seus fãs – já devidamente sanados.

 

 

“Parabolicamará” seria mais um disco fora de lugar, podendo ser inserido na discografia oitentista de Gil, mesmo sendo lançado em 1991. O que o torna intrigante e digno de figurar entre as obras mais arrojadas dele nos anos 1990 é, justamente, a carga lírica e essa análise perfeita da globalização. Estes temas assumiriam posição coadjuvante na obra dele no momento seguinte, quando subiu ao palco para registrar o bem-sucedido “Acústico MTV” e “Tropicália 2”, que foi puxado por uma composição marcante – e moderníssima, tristemente atual: “Haiti”.

 

 

“Eterno Deus Mu Dança” e “Parabolicamará” mostram um Gilberto Gil experimentando a passagem dos quarenta e tantos anos para os cinquenta e poucos, vivendo fatos marcantes da vida – ele também perderia seu pai, José, em 1992 – e aprendendo com isso. Sua obra é ampla e constituída de tantos álbuns que, olhando em perspectiva e colocando-os em ordem cronológica, mistérios sempre haverão de pintar por aí. Mas isso a gente já sabe.

 

 

Reouçam e reavaliem, pois.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

2 thoughts on “Reouvindo o Gilberto Gil de 1989-1992

  • 26 de maio de 2022 em 15:50
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    Excelente análise, pra variar. Gostaria de chamar a atenção para um fator nem tão central: o papel de Liminha como produtor. Em quase todos os lugares, Liminha é aclamado como um dos melhores produtores do Brasil. Mas será, mesmo? Parte de sua produção com bandas e cantores pop ficou muito datada, aquele som característico dos anos 80 e que hoje é muito pouco apreciada! Uma das poucas exceções que me lembro são os discos Selvagem e Passo do Lui, dos Paralamas. Mesmo grandes álbuns dos Titas (Banguelas, Oblesq) tem excelentes composições, mas que soam hoje datadas, com arranjos e qualidade de som ruim. Há outros exemplos de produções do Liminha que hoje soam muito devedoras daquela epoca: Kid Abelha, SS Sputnik(!), Lobão, Blitz… Seria interessante um texto a respeito, até porque há outros trabalhos em que ele mandou bem!

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  • 25 de maio de 2022 em 11:51
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    Belo artigo. Só um adendo: “Madalena” (composição de Isidoro Oliveira, lançada como chá-chá-chá por Hélio Amaral em 1961) já havia sido interpretada por Gil, em dupla com Caetano, no show registrado no disco Barra 69.
    E só um comentário: qualquer indisposição de $hoo$ha e $hu$honaristas contra Gil é um elogio para este.
    Um e-abraço,
    Ayrton

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